Em resposta a D. António Marcelino
[publicado no Diário de Aveiro, 5 de Abril de 2006]
O Bloco de Esquerda recentemente apresentou um projecto-lei que visa a inclusão no Código Civil da possibilidade de divórcio a pedido de um dos cônjuges. De acordo com a lei actual o divórcio só é admitido por mútuo consentimento ou processo litigioso.
Esta iniciativa legislativa do Bloco de Esquerda foi abordada num artigo de opinião de D. António Marcelino, bispo de Aveiro, neste mesmo jornal no passado Domingo. Reconhecemos o direito de qualquer cidadão em exprimir a sua opinião, por esse direito sempre nos batemos e o continuaremos a defender como pedra basilar da nossa democracia. Pelas mesmas razões temos o direito de clarificar as nossas posições, argumentá-las, debater argumentos contrários e denunciar hábeis fugas à verdade e à realidade.
Antes de mais importa esclarecer o conteúdo da proposta do Bloco de Esquerda. De acordo com esta proposta, o divórcio a pedido de um dos cônjuges começaria com uma conferência onde o conservador convoca os cônjuges e os tenta conciliar. Caso esta reconciliação não seja possível o requerente deverá renovar o pedido de divórcio após um período de reflexão de três meses e dentro do ano subsequente à primeira conferência; se assim for, o conservador convoca uma segunda conferência em que tentará, pela segunda vez, reconciliar o casal, declarando o divórcio caso a reconciliação falhe e na verificação dos restantes pressupostos legais. Previamente ao pedido de divórcio, na existência de filhos menores, será obrigatório o requerimento da regulação do exercício do poder paternal no tribunal competente.
O argumento de que “as leis divorcistas portuguesas são as mais facilitadoras da Europa” não corresponde à realidade. Em Portugal, à semelhança da maior parte dos países europeus, a actual lei assenta no princípio da culpa e não na verificação do fracasso do casamento. Excepções são Alemanha, Suécia, Noruega, França e Espanha (para além dos EUA) que já realizaram esta transposição. Na vizinha Espanha o ano passado procedeu-se à alteração legislativa assente na vontade do indivíduo.
A verdade é que as duas possibilidades existentes no quadro legal existente, forçam a preponderância da culpa nos divórcios, o que torna o processo mais doloroso já que obriga à exposição da intimidade e intensifica os conflitos já existentes. Em Portugal a vontade individual dos cônjuges só é tida em conta no acto de casamento e no divórcio de consentimento mútuo. Parece-nos lógico que um casamento só pode continuar a existir com a concordância de ambos os cônjuges. Poderá alguém ser considerado culpado de deixar de amar o cônjuge?
Afirmar que estas leis são feitas “por muita gente divorciada ou a caminho, ávida por captar simpatias e votos” é de uma desonestidade intelectual gritante, para além de, como é óbvio, não corresponder à realidade. Trata-se do equivalente ao que já li com bastante desagrado, de que quem recusa a si próprio o casamento e não sabe o que é ter companheira e filhos se devia abster desta discussão. Ambos os argumentos são repudiáveis. Todo o ser humano, não obstante a sua condição, é livre de possuir e divulgar a sua opinião sobre tudo o que o rodeia, podendo em tudo ser contrariado.
Concordamos com D. António Marcelino quando diz que os legisladores “não podem desconhecer o país e os seus valores culturais, nem fechar os olhos ao que se passa ou ter apenas dos problemas uma visão unidimensional”. Foram exactamente estes os motivos que levaram o BE a apresentar o documento em questão. Já desde o século XIX que o casamento assenta nos sentimentos e na afectividade, logo depende da vontade mútua de duas pessoas que decidem procurar juntas a felicidade e a realização pessoal. É o autor do artigo de 2 de Abril que demonstra uma visão unidimensional do problema já que tenta impor a sua concepção de casamento a toda a sociedade. O diploma do Bloco não impõe nenhuma visão a ninguém, apenas reconhece o direito à individualidade e à livre escolha de cada cidadão.
É aliás a visão atenta, diversificada e preocupada do Bloco de Esquerda que o faz não só avançar com propostas nesta matéria, mas em tantas outras relacionadas com os modelos de vida em conjunto e de construção de famílias, cada vez mais adaptadas a novos tempos e novas realidades.
É desejo de todos que as relações estejam sempre acompanhadas de amor e felicidade. Mas, na impossibilidade de legislar afectos, a lei tem que ir ao encontro da realidade e da sociedade. Não se justifica obrigar alguém a manter no papel um contrato que na prática já não o é. O que vale manter um casamento em que um dos elementos constituintes do casal não se sente realizado? O amor nunca poderá ser imposto.
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