quarta-feira, maio 10, 2006

A guerra nunca é bonita

[publicado no Diário de Aveiro, 24 de Março de 2006]


Três anos se completaram desde o início da invasão do Iraque. Aniversário marcado pela maior ofensiva militar desde a invasão. Em apenas 21 dias a tão mitigada perigosa-nação capitulou; contudo a falta de planeamento pós-invasão e a oposição da população fizeram com que volvidos 3 anos a situação seja caótica.

Flash. Perigosas armas de destruição massiva, agentes químicos e biológicos prontos a atingir o Ocidente em poucos minutos, asseguram ao pormenor. Durão Barroso, anfitrião das Lajes, viu provas inegáveis da existência de tais armas, garante. À revelia do Direito Internacional e do Conselho de Segurança da ONU se avança. Idóneas criaturas.

Encenação propagandística. Encarcerados no sofá nos asseveram como real o resgate da soldado Jessica Lynch, o derrube do Saddam de bronze coberto pela bandeira estado-unidense, o peru de plástico exibido por Bush, a heróica captura de Saddam. Adornos mediáticos.

Fazedores de opinião. Em plena guerra adormeci com a notícia de um iraquiano, que infiltrado nas linhas inimigas, lançara uma granada para uma tenda com militares americanos. Os comentadores de serviço asseguram tratar-se de terrorismo, já que o suspeito não avisara com antecedência (!!). Acordo, bocejo e eis que afinal a granada foi lançada por um americano muçulmano a mando dos opositores. Almoço e por fim era apenas um soldado que padecia de doença mental.

Imagens de uma guerra asséptica em tons de verde, recortada minuciosamente por bombas inteligentes nos forçaram a retina. Verdes clarões que o vermelho ocultam. Ao longe, não sentimos a angústia do estridente alarme de ataque aéreo; o ardor da explosão; os amargos estilhaços do amor; a agonia da procura de queridas entranhas por entre os escombros; a náusea da descoberta; a dor da ausência; a irascível visão do amanhã.

Longe de casa, apartados de famílias e amigos, soldados de botas ensanguentadas marcham ao batuque de senhores de guerra com aprimorados sapatos. Treinados para matar são transportados da plenitude dos afectos, das apaixonadas carícias para o campo de batalha, para o odor de corpos dilacerados. A saudade do toque; a lonjura do conforto; a distância do amor; treinados reagem aos seus condicionamentos. Nem de tudo o kevlar protege. Imaculados senhores entoam o panegírico da morte enquanto se tingem de negro óleo.

Temperado pelo sal das lágrimas, inocentes de ambos os lados exacerbam seus ódios esquecidos. A norte e a sul da trincheira a propaganda macera infernalmente, a catarse é proibida, a tranquilidade não é opção.

A realidade da guerra não é adocicada, é a violência, o descontrolo, a tirania, a opressão, a barbárie, a crueldade. A desumanização dos rostos. Daí derivam a tortura e os maus-tratos a civis.

Um mundo mais seguro, um Iraque livre e democrático prometeram. Apenas semearam um ninho de intolerância, pronta a espalhar-se por todo o globo; apenas conseguiram colocar o país em guerra civil. Nada mais conseguiram que o fracasso da guerra cosmética. A guerra asséptica não existe. O fracasso da guerra da mentira. Nem todas as falácias politico-mediáticas foram suficientes para nos toldar o olhar.

E agora, pasme-se, desenham já planos para uma futura invasão do Irão com a mesma serenidade como quem diz “mais uma volta mais uma viagem”. Da guerra serei crente e adepto quando os líderes visceralmente se digladiarem num ringue. Prossigo a minha demanda pela inocência perdida.