domingo, maio 14, 2006

Os jornaleiros de amanhã

[publicado no Diário de Aveiro, 7 de Abril de 2006]

O meu avô trabalhou como jornaleiro. Já são raras as pessoas que conhecem o significado desta expressão. Quando a semântica é ultrapassada pela realidade há palavras que caem no desuso e por fim no esquecimento. Jornaleiro é o operário a quem se paga a jorna, isto é o salário diário. Sem qualquer vínculo contratual, a não ser o vigente de sol a sol, o meu avô palmilhava os campos agrícolas.

Desde a realidade do jornaleiro a Terra girou e muitas lutas e sacrifícios depois muitos direitos laborais e de dignidade humana foram alcançados.

Surge-nos agora o contrato primeiro emprego, CPE, como um fenómeno francês, distante portanto. O que é isto afinal? A avaliar pelas notícias televisivas o que se passa em França resume-se a uma centena de jovens em violentos confrontos com a polícia, passando por aqui a justiça ou injustiça da coisa. Antes de mais convém esclarecer que entre estudantes do ensino superior e secundário e trabalhadores chegaram a juntar-se três milhões de pessoas em simultâneo nas manifestações. Como tal a centena que participa em distúrbios é um número insignificante que somente se representa a si própria.

Longe destas luzes mediáticas vejamos o que realmente se passa. O Governo francês avançou com a legislação do CPE, no qual qualquer jovem com menos de 26 anos pode ser despedido nos primeiros dois anos de contrato (um, se a iniciativa hipocritamente conciliadora do presidente Chirac avançar) sem que para isso o empregador necessite sequer de apresentar um motivo (poderá ter que comunicar ao jovem uma qualquer razão, se a iniciativa presidencial tiver frutos). É portanto necessário analisar a justiça da coisa pelo que ela é de facto. É esta alteração legislativa que está em causa.

O contrato primeiro emprego é apresentado pelo governo de direita como uma medida visando a criação de mais emprego. Facilmente nos apercebemos que esta justificação não corresponde à realidade. Na sua essência o CPE é uma bandeira do neo-liberalismo, de um modelo de desenvolvimento assente na precariedade de um emprego sem direitos. Torna-se claro que com a aprovação do CPE o jovem empregado é mão-de-obra barata e descartável sem qualquer poder reivindicativo. Findos os dois anos o empregador pode prescindir dos seus serviços e contratar, a preços de saldo, outro jovem com iguais anseios pelo seu futuro.

Interessa-me ainda falar da democraticidade da coisa. A mesma direita neo-liberal garante que a democracia não se compadece com greves e manifestações. A democracia não se faz nas ruas, faz-se no voto – como me afiançaram num recente debate na AveiroFM. Não restam dúvidas de que o Governo francês está legitimado pelo voto democrático para legislar. Contudo a visão de democracia deve ser bem mais abrangente. Tratando-se do governo pelo povo e para o povo devemo-nos interrogar se esta medida vai de encontro aos interesses da população e se é substanciada pelo seu apoio. Em relação aos interesses que são servidos pela lei rapidamente chegamos a uma conclusão: os económicos mas não o das pessoas. Devemos ainda ter presente que as grandes conquistas da liberdade em democracia tiveram as suas raízes nas ruas, como é o caso dos direitos dos trabalhadores, das mulheres, das minorias raciais entre muitas outras.

Deparamo-nos ainda com a redundância da coisa. Chegados a este ponto de pobreza e desigualdade social graças ao modelo neo-liberal, dizem-nos que para as corrigir se deve aprofundar o mesmo modelo no mesmo caminho. Quantas mais vezes teremos que bater com a cabeça na parede? É preciso resistir à investida. É nossa responsabilidade refutar este pensamento único e na alternativa construir um mundo com lugar para todos.

Deste modo, discutir o CPE em Portugal faz todo o sentido. O neo-liberalismo através da tentativa francesa tenta incluir esta proposta na agenda politica europeia, tal como no futuro próximo nos tentará impingir a flat tax (taxa de IRS indiferenciada) como a solução para a fuga ao fisco sem nada nos dizer sobre o sigilo bancário.

Beneficiamos hoje do esforço de muitos homens e mulheres que lutaram para que as gerações seguintes tivessem uma melhor qualidade de vida que as suas. Não podemos consentir que os frutos do seu esforço e sofrimento caiam por terra sem sementes. Dos meus vinte e quatro anos não posso ser indulgente com a possibilidade do retorno do “jornaleiro” à nossa vivência.