quinta-feira, maio 18, 2006

Pirataria ou a recusa da formatação?

[publicado no Diário de Aveiro, 14 de Abril de 2006]

A cultura engloba os padrões de conhecimento, educação, práticas, costumes, tradições, linguagens e outras formas de expressão pela qual o Homem assimila, sente e transforma o que o rodeia.

A transmissão intergeracional de características biológicas pode ocorrer apenas de duas formas: geneticamente ou pela aprendizagem social; com processos de variação e selecção a moldarem a evolução biológica no primeiro caso e evolução cultural no segundo.

Como vemos a cultura e o caso particular da criação artística são essenciais à coesão social e ao desenvolvimento civilizacional. Contudo na economia de mercado a arte e a cultura surge-nos como mera mercadoria, bem de consumo pronto a ser transaccionado.

Recentemente John Kennedy, presidente da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) veio a Portugal ameaçar com multas até € 5.000 em processos extra-judiciais contra quem tenha partilhado ficheiros de música através da Internet. Em relação a este anúncio não me interessa a discussão jurídica, apesar de duvidar da legalidade desta medida e mesmo do sucesso de eventuais processos em tribunais. São os agentes políticos que propõem e constroem a legislação, definindo assim o que é legal e ilegal, interessa-me pois a discussão política.

Os direitos de autor deverão ser sagrados. O artista e criador deve ter os todos direitos intelectuais e monetários da sua obra protegidos. A própria natureza primordialmente imaterial dos bens culturais dificulta a definição do seu conceito de propriedade e da melhor forma de o proteger pelo que é necessária uma reflexão profunda neste campo.

A utilização da partilha online de ficheiros culturais que tenham como fim a venda e a obtenção de lucro terá necessariamente que constituir infracção ilegal. Contudo a iniciativa da IFPI pretende atingir também os utilizadores que obtém músicas através de download para seu uso particular.

Que se considere ilegal esta segunda conduta parece-me extremamente errado. A Internet é um meio de divulgação por excelência onde potenciais compradores e artistas se descobrem. Caso se tratassem de bens perenes certamente se registaria um aumento na venda destas músicas, quando para tal o dinheiro ou a oportunidade surgisse por parte do utilizador.

O problema para a indústria é que o seu modelo de negócio baseado no maior lucro no menor tempo possível não se coaduna com a divulgação de produtos através da Internet. Isto uma vez que investe em produtos descartáveis, substituídos freneticamente, e inábeis em se tornarem produtos de consumo duradouro. Desta forma a obtenção da música no sistema peer-to-peer não se traduz em vendas dado que o interesse por estas músicas se esvanece rapidamente.

O que é bastante claro é que o Sr. Kennedy veio defender os interesses da indústria que representa e não os interesses dos artistas, do público e da cultura em geral, tanto mais que a margem do royalties dos autores é bastante reduzida. Praticamente tudo o que vemos, lemos e ouvimos é-nos trazido por apenas sete multinacionais, sendo que a antiga empregadora do Sr. Kennedy apresenta lucros semelhantes à soma das restantes seis.

Cada uma destas empresas detém os meios de produção, distribuição, publicidade, informação, exibição e algumas ainda fabricam os próprios suportes e leitores digitais; daí a preferência pelo formato digital que também é o que depois mais facilmente é partilhado pela Internet.

Face a este monopólio é notório que o fim da partilha de ficheiros online irá beneficiar somente estas multinacionais. Editoras alternativas e artistas independentes enfrentariam uma dificuldade colossal de ver o seu trabalho atingir o público.

A discussão trazida pela IFPI aparece fora do contexto da realidade Portuguesa já que o Estado impõe uma taxa de IVA de 21% nos produtos culturais, não lhes reconhecendo a sua importância social; as rádios apresentam playlists bem limitadas e não respeitam a música portuguesa; os servidores de Internet oferecem grandes velocidades e quantidades de up e downloads, sempre desresponsabilizando-se do uso que lhes é dado, mesmo que anunciem que já podemos ter todos os filmes e músicas que queremos.

O afunilar estético praticado por estas produtoras-distribuidoras-exibidoras é tanto mais grave já que os actuais grandes meios de sociabilização são exactamente os seus produtos. A exposição a estes bens culturais influencia a nossa visão sobre mundo, os nossos valores e ideias, no fundo são tijolos da nossa construção enquanto indivíduos. Atesto que a própria escrita deste artigo empregou sete estrangeirismos.

Sendo a transmissão cultural fulcral para a construção da Humanidade e transmissível através de características biológicas para as gerações seguintes devemos analisar a gestão dos bens culturais em termos de benefício para a sociedade. A uniformização cultural reduz a consciência critica do indivíduo e inevitavelmente da Humanidade no seu todo.