quarta-feira, maio 10, 2006

Saúde em Portugal: uma doença crónica

[publicado no Diário de Aveiro, 17 de Março de 2006]


A Constituição da República garante a protecção da saúde através do acesso a um sistema nacional de saúde (SNS) universal e tendencialmente gratuito. Actualmente os portugueses pagam directamente 30% dos custos de saúde, das quantias mais elevadas da Europa. As taxas moderadoras têm – bem ou mal – a função de desincentivar a afluência abusiva aos serviços hospitalares, não devendo portanto constituir uma parte importante do seu funcionamento. De pantufas vai-se delapidando a gratuitidade da saúde. Por ora altera-se o princípio subjacente a estas taxas transformando-as progressivamente em cobrança de serviços. Com despudor atenta-se contra um dos mais básicos pilares da dignidade humana. O pequeno e discreto passo – o aumento das taxas moderadoras – representa a mudança de paradigma no SNS tornando-se no cavalo de Tróia para minar o direito do cidadão aos cuidados de saúde.

O Ministro da Saúde, Correia de Campos, admitiu estar a ser ponderado um novo modelo de funcionamento do SNS com a coabitação de três hipóteses de pagamento: compartição total do Estado, a 75% ou a 50%, sendo os restantes encargos suportados pelo utente. Face à pronta e alargada oposição o Ministro rapidamente suavizou o discurso, mas nunca colocou em causa a afirmação inicial. Por conseguinte este poderá ser o vaticínio de mais e maiores ataques ao acesso universal à saúde.

Sem tempo para recuperar o fôlego, nem um mês volvido surge-nos o avolumado aumento das taxas moderadoras, atingindo os 23% nas urgências hospitalares. A ideia de mexer neste particular não é nova. Santana Lopes propôs-se criar taxas diferenciadas. O então Presidente Jorge Sampaio interviu de imediato assegurando que não contassem consigo para a aprovação da lei. Também José Sócrates, na oposição, reagiu dizendo que se tratava apenas “do aumento das taxas”, na prática “um novo imposto sobre a saúde”, o que lhe parecia “muito errado”. José Sócrates afirmava que a solução para o deficit da saúde devia passar pelo combate à fraude fiscal. Um ano decorrido e a acção e a retórica encontram-se em desarmonia. Não deixa de ser um péssimo prenúncio que logo após a saída do Presidente Jorge Sampaio esta lei tenha sido anunciada; certamente o Governo sabe com o que contará no futuro.

Poderíamos pensar que o Governo teria uma política integrada para o sector, sendo esta medida uma parte de um todo coerente. Desenganemo-nos. O sistema nacional de saúde apresenta vários problemas e deficiências, limitações de meios médicos, restrições e condicionamentos em diagnósticos e tratamentos, apresentando extensas listas de espera. Apesar destes factos, Portugal é o sétimo país da OCDE com maior despesa per capita na saúde. Não se tratando primordialmente de uma questão de investimento pouco tem sido feito para corrigir os erros e as escolhas do passado. Os referidos aumentos surgem ainda acompanhados do encerramento de várias maternidades e de serviços de urgência nos centros de saúde e hospitais, com especial incidência no interior, agravando as assimetrias. Neste momento 400 mil portugueses já estão a mais de 60 minutos das urgências mais próximas, o tempo considerado máximo para um tratamento eficiente ser exequível.

O modo de vida, a alimentação, os comportamentos culturais, a poluição, o stress físico e emotivo das sociedades ocidentais acarreta a ocorrência de doenças muito específicas destas sociedades. Mais uma vez falha a visão integrativa de políticas de saúde, o investimento não é direccionado para medidas profilácticas de promoção de hábitos e locais saudáveis quer em casa, no trabalho ou na rua. Existe ainda a lacuna na abordagem do problema social e cultural do envelhecimento e da necessidade de cuidados paliativos.

O estado social europeu está em crise. Portugal se pretender afirmar-se como um estado europeu moderno deve pugnar pela sua preservação e aprofundamento, não só porque se trata da nossa identidade mas também por ser a melhor forma de proteger os cidadãos e lhes conferir mais direitos. É preocupante a visão de um Portugal onde o acesso a cuidados médicos seja apenas concedido a pagadores de seguros, com os demais excluídos. Será inquietante que, esquecida a perspectiva histórica seja esta a realidade considerada normal e única possível na consciência das gerações futuras.