Reminescências
Provérbios populares existem para todos os gostos e geralmente existem sempre dois que se antagonizam.
O homem é um animal de hábitos. Nunca levei este a sério, mas lentamente começo a notar algumas evidências dessa persistência na continuidade mesmo em momentos de ruptura.
Muda-se o paradigma mas a rotina permanece, só é necessário um pouco de cosmética que altere um pouco o significado do acto. Ao longo da história da Humanidade muitos destes eventos se executaram.
Recentemente celebramos o 10 de Junho como Dia de Camões, Portugal e das Comunidades. Mas terá sido sempre assim
Com o advento da República em 1910 instituíram-se novos feriados e outros se finaram, em especial os religiosos já que se pretendia a República laica. Criou-se ainda a possibilidade de cada município adoptar uma data com seu feriado municipal. Lisboa escolheu o dia 10 de Junho por se acreditar ser a data da morte de Luís de Camões. Também a escolha da data não se deveu motivos completamente altruístas e inocentes, tratou-se de abafar outro hábito bem perto, o Santo António de dia 13.
A partir de 1933, com o Estado Novo, é que o dia 10 de Junho passou a ser celebrado a nível nacional dando-lhe novo significado, passando a ser chamado Dia da Raça, celebrado até 1974.
Outro exemplo de datas que persistem é o 8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, que já se comemora desde 1646 por obra e graça de D. João IV. Também aqui falta a contextualização, já que raros são os casos conhecedores da justificação deste feriado. Se no século XVII a Imaculada Conceição foi declarada padroeira de Portugal, também o Estado Novo exacerbou a exploração propagandística da data. Data que mereceu grande actividade do Estado Novo como a publicação do Regulamento da Mocidade Portuguesa Feminina e a criação de vários serviços e infra-estruturas em seu louvor.
Aparentemente nunca se pretende quebrar hábitos. Com a instalação de uma nova ordem usam-se os hábitos instalados trocando-lhe o simbolismo para os aproveitar em seu proveito. Há os mais variados exemplos diversos, não se prendendo apenas com a Modernidade e com questões de calendário.
2 Comments:
O que propões? acabar com o 10 de junho e o 8 de dezembro como feriados nacionais? A extrema-direita aproveita o 10 de junho como a extrema esquerda aproveita tantas outras datas. Não é por essas minorias que vamos esquecer a nossa História. E dela também faz parte tanto Camões, como Santo António, como a evocação da Imaculada Conceição, e até a Mocidade Portuguesa, que colocaste como ilustração não percebi bem porquê. Um País sem História é um País se memória e sem orgulho na sua Pátria. E não tem mal nenhum em ter-se orgulho na Pátria.
abraço
Ao escrever o texto não tinha em mente nada do que acabaste de retirar do texto. Tinha apenas 2 objectivos com o texto:
1) contextualizar a enxurrada mediática destes grupos nesta data
2) expressar aquilo a que chamei a continuidade em momentos de ruptura
Em relação a 1) achei importante já que as notícias são a cru e ninguém se preocupou em explicar o porquê desta coincidência de datas e da aparência mediática. Convém relembrar que estes grupos são proibidos pela Constituição e muito falaram de segurança mas, no dia 10, onze elementos foram detidos por agredirem 4 cidadãos (motivação: os cidadãos estavam em convívio multiracial).
Foi pelo ponto 2) que dei outro exemplo de feriado, o 8 de Dezembro. Podia ter falado da transformação do Carnaval de festa pagã para religiosa e a transmutação de significados e actos, como de muitas outras coisas como infra-estruturas. É um exemplo noutra esfera mas que transmite aquilo que eu pretendia, que na História da Humanidade teimamos em manter os hábitos apenas conferindo-lhes outro significado e simbolismo. Apenas uma reflexão sociológica avulsa.
Quanto ao que perguntas, apenas o caso da ilustração foi pensado aquando do texto:
- A ilustração reflecte bem o texto: a propaganda por parte do Estado Novo. Este livro todos os alunos, da 1ª classe, tinham e na capa está retratada a Mocidade a saudar a bandeira.Ora o Dia da Raça era praticamente o dia da propaganda nacional.
- Quanto à perspectiva histórica não podia estar mais de acordo. A descontextualização da História é sempre perversa, sendo que foi sempre usada quer por regimes totalitários de extrema-direita como extrema-esquerda. E neste momento está em curso uma nova descontextualização, a da semântica. Já no “1984” o Big Brother conferia novos significados às palavras e isso verifica-se agora.
- Quanto ao orgulho na Pátria, nasci e vivo em Portugal como poderia por qualquer “fatalidade” ter sido noutro país. Ora aquilo que sou hoje reflecte o meio em que fui criado, daí a importância da Pátria para cada um de nós e para o colectivo. Sou Português, não quereria ser qualquer outra coisa, mas não assumo a minha Nação como superior às outras. Simplificando, talvez em demasia, tenho uma visão cosmopolita do mundo e bastante orgulho na minha Mátria, a Humanidade. E olha a provocação: os democratas-cristãos também padecem de orgulho?
- Muito se tem falado do fim dos feriados, do deslocamento desses dias para segundas-feiras, da relação com a produtividade, etc. O 10 de Junho não vejo motivos para o seu fim. O 8 de Dezembro para além de feriado nacional está cravado na minha identidade individual, já que se celebrava uma festa na capela juntinho à casa onde cresci. Contudo não vejo grandes problemas no seu término, caso isso se considere justificado. Esta quinta-feira é outro feriado complicado, o Corpo de Deus, e eu que costumo ser uma pessoa informada nestas coisas confesso que não sei o significado deste dia. Por uma rápida pesquisa na net julgo que será o dia em que se fazem as comunhões, certo?
Grande testamento que aqui deixei.
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