sábado, julho 29, 2006

A História dos Vencedores

[publicado no Diário de Aveiro, 28 de Julho de 2006]


Folheando a imprensa desta semana acaso reparamos com vários textos sobre a História e a sua ligação com a política. Vislumbramos a proposta polaca de alteração do nome do campo de concentração de Auschwitz aprovada pela UNESCO; contemplamos o actual revisionismo histórico da guerra civil espanhola onde, agora que se completam 70 anos, não se querem nem bons nem maus.

A nível interno tivemos, no debate parlamentar com a Ministra da Educação, um deputado da direita a questionar a dita ministra sobre se uma pergunta do exame de História não se tratava de um “erro grave”. Um ex-ministro da mesma bancada gritou ainda que a definição apresentada no exame era um autêntico “crime”. Não me interessa discorrer sobre a dita questão e os referidos intervenientes, porque se hoje são umas personagens no passado outras houveram e no futuro outras serão.

A História é descrita por investigadores e noutros tempos relatores, em suma, por seres humanos. Desta forma por muito que se apregoe a objectividade da análise histórica a verdade é que ela não existe.

Os métodos utilizados na investigação histórica, os seus objectivos, as fontes utilizadas, a importância atribuída aos diferentes conjuntos de dados, a linguagem utilizada na sua transposição, a perda e surgimento de conceitos, entre outros, são elementos de subjectividade no relato da História. A própria cultura e espaço social do indivíduo influenciam a sua abordagem na investigação. A padeira de Aljubarrota exemplifica bem este ponto, já que sobreviveu bem nos relatos históricos ao invés de muitos outros acontecimentos mais relevantes daquela batalha.

Este relativismo denota-se ainda, por exemplo, nas descrições históricas do tempo da escravatura em que esta prática era considerada aceitável em contraponto com as redefinições que a sociedade actual faz desse período tendo em conta os valores vigentes.

A História é uma construção e não uma verdade absoluta e imutável. Cada historiador e, em última análise, cada cidadão deverá ter a liberdade de escolha para tirar as suas próprias interpretações e conclusões com base na informação ao seu dispor. O processo de estudo histórico não é finito, estando em permanente edificação com o surgimento de novos dados e análises. Não existe propriamente uma história “oficial”, mas sim teorias mais bem aceites e, como em toda a ciência – exacta ou social – é ponto essencial que estas sejam perfeitamente questionáveis. É esse o motor do conhecimento e a marca identitária da ciência.

A reinvenção da História em versão de verdade absoluta para servir os preceitos políticos da actualidade de determinada ideologia, e a sua imposição à sociedade é um caso bastante gravoso. Já não são apenas os valores e a moralidade alheia que são quase tornados obrigatórios, mas também a própria História.

No caso concreto foi questionado o trabalho dos técnicos educativos ao terem considerado que uma das perguntas parte de uma noção histórica criminosa. Atendendo a que na referida questão do exame se encontra a interpretação aceite pela maioria da comunidade científica – não querendo isto dizer que seja a única e absoluta – pergunto-me quais as intenções destes senhores?

Será desejo secreto, mas não tanto, que o poder político – quando o detiverem – controle directamente os conteúdos programáticos da disciplina de História? E já agora também tomarão as rédeas de outras disciplinas, filosofia por exemplo?

Na percepção do mundo acabamos por ser reféns da História. O presente não passa de um instante. É no encadeamento do presente nos acontecimentos passados que nos surge a realidade contextualizada, perceptível e mais lógica.

Para tornar a actual sociedade o modelo absoluto e finito da realidade nada melhor que tornar a própria História totalitária e bem adaptada às necessidades. Para controlar o futuro nada melhor que ser proprietário do passado.