Sonhos de evasão
Recordo sonhos de evasão. Agachado e comichoso pelo feno, cheiro as papoilas e aguardo o momento. Apresso-me a correr, chego ao destino e, de pés molhados e enlameados, grito num só folgo trinta-trinta-e-um-salva-todos. Outras vezes conto freneticamente até prosseguir a minha busca. Desde pequeno infante jogo às escondidas, tendo mesmo chegado a jogar nas próprias instalações da universidade onde estudava. Sempre foi motivo de alegria.
Escuto um soldado israelita sorridente explicar para a câmara que lutar com vegetação é diferente. Gesticula dizendo que tem que ver se o inimigo está por detrás dos arbustos, “É como jogar às escondidas!” exclama alargando o sorriso. Triste peão inebriado pelo vermelho-sangue das papoilas.
Israel anuncia que só consente um cessar-fogo se tropas internacionais forem estacionadas no sul do Líbano. Está a União Europeia disposta a aguentar as circunstâncias beligerantes que outros provocaram? Irá a União Europeia assegurar a linha de fronteira norte de Israel para que essa mesma nação possa continuar a se alagar a sul e leste, naquilo que constitui a ocupação ilegal da Palestina? As forças internacionais ficarão incumbidas de suster os levantamentos aí existentes de cada vez que Israel dilacere ainda mais o povo palestino? Por último, a União Europeia pretende ter nas mãos a responsabilidade pelo controlo da fronteira quando (deveria dizer “se”?) os Estados Unidos decidirem invadir, como se vai lendo, a Síria ou o Irão?
As mesmas questões não posso fazer sobre Portugal já que Luís Amado é mestre do esconde. O Ministro dos Negócios Estrangeiros esquivou-se a responder à pergunta do deputado socialista Vera Jardim sobre qual a posição de Portugal na reunião de Bruxelas. A população continua a ignorar a posição do Governo sobre a guerra, e ao que parece até deputados socialistas a ignoram. Quem terá ficado agradado com o debate parlamentar foi o Embaixador israelita que no final cumprimentou efusiva e ostensivamente o Ministro.
Leio na imprensa que o Hezbollah não reconhece o direito de Israel existir, porém este estado existe de facto. Não leio que Israel não reconhece o direito da Palestina existir, e que é essa a condição para a sua não existência e da sua desgraça. Qualquer paz duradoura terá que passar por aqui.
Há muito que foram esquecidos os dois soldados, pretexto para a ofensiva que conta já com 24 dias e que, pela sua envergadura, denota uma preparação de longa data à espera de motivo.
Os Estados Unidos, guerreiro de muitas frentes, contra todos veta a condenação do assassínio de quatro observadores da ONU. Contra o bombardeamento de comboios humanitários carregados de medicamentos apenas o ensurdecedor silêncio.
Noutra frente, na terra das papoilas brancas, agora negócio florescente, perpetua-se o caos. A semana passada, de São Jacinto, partiram mais soldados para o Afeganistão. Há muito que o motivo evocado para a invasão, a captura de Bin Laden, foi esquecido.
No berço da civilização, a ceifa sanguinária continua ininterruptamente. Por entre os escombros do Iraque já ninguém procura armas de destruição massiva.
Há quinze dias, neste mesmo espaço, critiquei ambas as partes. Talvez hoje não me sinta bem. Choro as crianças difundidas a escrever “de Israel com amor” nos seus mísseis. Porque não jogam elas às escondidas? Quem se sente bem com a morte do amor?
Os verdadeiros sonhos de evasão são os de quem nunca pediu a guerra e é forçado a vivê-la. Estamos condenados a um estado de guerra permanente? Quem não tem as mãos manchadas de sangue? Quem grita salva-todos?
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