Chocolate amargo
[publicado no Diário de Aveiro, 1 de Setembro de 2006]
“Não podemos ter a ilusão de que Portugal está imune” afirma António Costa. Que mal atormenta o Ministro da Administração Interna, que perigo preconiza para Portugal? O jornal chama-lhe “ameaça” o Ministro “risco”. É de ficar intrigado.
Olho para o título da notícia “Imigrantes podem invadir Algarve”, aí as dúvidas se dissipam, quer o jornal quer o Ministro não falam de pessoas, falam de imigrantes!
Todo este corrupio se deve, segundo o Ministro à blindagem de outras fronteiras da União Europeia (Espanha, Itália e Malta), o que poderá levar ao afluxo de imigrantes provenientes de África para a costa portuguesa. Daí a estarem a reforçar a fiscalização e os meios à disposição.
O desespero de uma vida adiada, a fuga à fome, à doença, à miséria e à morte deixa os imigrantes à mercê do atroz tráfico de seres humanos. Percorrem o caminho das suas vidas através de África e do Mediterrâneo em busca da sobrevivência: a Europa. Mas pensa o Ministro que tudo se resolve com arame farpado.
Aparentemente, para António Costa o único problema reside na chegada de africanos à costa portuguesa. Não lhe interessam as origens, causas e consequências do problema. Não teremos nós, Portugal, Europa e Ocidente algum papel neste êxodo, nomeadamente a nível de responsabilidade?
A penúria a que África está votada já vem de longe, mas não me interessa discutir o passado colonial e o desenho linear das fronteiras. Interessa-me discutir o presente. Se em África a fome persiste, a mim nunca me faltou nenhum produto agrícola produzido nesse continente. Aí, produção de leguminosas e fruta, tradicionalmente cultivadas noutras latitudes, cresceu exponencialmente nos anos mais recentes, mas continuam a ser o cacau e café os produtos mais tradicionais.
Podia abordar outros bens com maior valor comercial como os diamantes, o petróleo, o aço, a madeira, o carvão, entre outros que todos os dias rumam para norte, mas interessa-me particularmente o cacau e o café.
Num continente votado à fome, milhares de hectares de solo estão ocupados pelas plantações de cacau e café. Ora, é sabido que estes dois produtos não têm a capacidade de combater a fome de um qualquer país produtor. Os avultados lucros resultantes da exportação destes produtos ficam nas mãos de empresas multinacionais, sedeadas e de propriedade do “Ocidente”. Assim a população dos países produtores nada ganha com os seus recursos, e vê-se ainda privada de uma agricultura de sustentabilidade que procurasse garantir a sua própria alimentação.
Interessa-me levar a discussão ao absurdo e pedir que António Costa seja coerente e erga o seu muro civilizacional. Mas um muro não só para seres humanos, mas também para mercadorias. Quero que António Costa esteja disponível para anunciar aos seus cidadãos – e por ventura a toda a Europa – que a partir de agora vivemos sem chocolate e café.
Mas, o que me interessa realmente é que, de uma vez por todas, olhemos para a imigração como um problema nosso, de toda a Humanidade. Não porque é um incómodo para “nós”, mas porque “nós” somos parte do problema, e, principalmente, porque é um problema de toda a Humanidade. A diáspora continuará enquanto o sistema económico que o Ocidente impõe às populações africanas as condenar à pobreza.
1 Comments:
Não o teria escrito melhor. Cada vez mais me convenço que nós, os ditos países avançados, temos que meter as mãos à obra e fazer do mundo um sítio mais equilibrado entre países, continentes, hemisférios, o que lhe queiram chamar. Bons escritos, Nelson.
Enviar um comentário
<< Home