sexta-feira, dezembro 01, 2006

A quanto está a alface?

[publicado no Diário de Aveiro, 1 de Dezembro de 2006]


A população mundial cresceu freneticamente. As técnicas, a produtividade e a irrigação agrícola sofreram simultaneamente um enorme avanço (embora a sua distribuição continue longe de equitativa). Estes avanços permitem-nos comer vegetais fora de época e levar a laranja a locais tão recônditos como a Noruega. O leque de vegetais disponibilizados decresceu desmesuradamente, já que as espécies menos rentáveis foram progressivamente banidas e, consequentemente, algumas se extinguiram. Os nutrientes encontram-se dispersos pelos alimentos e, como tal, esta depleção na variedade prejudica gravemente a qualidade da alimentação humana, para além dos efeitos no ambiente e das perdas na medicina e farmacologia.

Num momento em que vivemos cercados por noticiários de cheias, não sonhamos que neste preciso instante estamos a contribuir para a seca a nível mundial. Apesar de todas as campanhas de marketing de poupança de água se centrarem no uso doméstico, a verdade é que 70% da água é consumida na irrigação da agricultura. No espaço de uma geração duplicamos a produção, mas às custas de um consumo três vezes maior de água.

A Muralha da China não é a única edificação humana visível do espaço, as estufas da Andaluzia também o são. Nesta região espanhola recorre-se à dessalinização, aumentando a salinidade costeira e pagando generosos custos energéticos. Estas estufas seriam inúteis não fosse o exército de mão-de-obra barata composta por imigrantes africanos em busca do sonho europeu.

Uma parte crescente dos legumes – e também das flores – consumidos na Europa são produzidos em países em vias de desenvolvimento, com destaque para África nos últimos anos. O que não é dito aos clientes: para produzir uma alface de 50 g no Quénia, são necessários 50 litros de água, para além da gasta na lavagem, tratamento e embalagem.

A importância da água nestas regiões é de tal ordem que o Governo do Egipto, grande produtor de batata, ameaçou com uma intervenção militar caso alguém ouse erigir uma barragem a montante do Nilo ou dos seus efluentes.

O impacto desta intensiva actividade agrícola é devastador para a população produtora que vive a jusante da captação de água. O cultivo de espécies mais adaptadas ao local e com menor exigência de água não é opção. A escassez de água acentuasse. Lagos outrora garante da sobrevivência da população, como o Naivasha, caminham para pântanos prontos a propagar doenças.

O país em vias de desenvolvimento nessas vias ficará, vivendo a ilusão do pouco emprego criado por estas empresas, invariavelmente de capitais ocidentais. Esta actividade faz entrar dinheiro no país, mas paradoxalmente mina toda a sua economia empobrecendo a população, os recursos naturais do país e tornando-o irremediavelmente dependente em termos alimentares.

E quando um europeu decidir fazer uma salada de tomate, aipo, pepino, e alface fora de época, quanto é que isso vale? 300 litros de água! Pagaremos o preço da água? E a quanto está o preço da alface? Não se preocupe, o terceiro mundo paga.

2 Comments:

Blogger Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

Existe outra questão que tem a ver com o facto de a maior parte dos nossos legumes serem espécies híbridas. A UE, por exemplo, definiu "calibres" para cada espécie que, na verdade, já supõe a utilização de sementes híbridas. Exemplo: o tomate. Conhecemos 3 ou 4 espécies mas existem mais de 2000. Como são os tomates que a UE aceita: redondos, cor vermelha, bom aspecto geral, pelo que eles são produzidos para resistirem ao transporte, etc.. Falamos de engenharia genética. As sementes são caríssimas, e não podem ser utilizadas as sementes naturais da exploração agrícola. O terceiro mundo não consegue competir. A biodiversidade é ameaçada. Mas continuamos a avançar (inconscientemente) felizes e contentes.

sexta-feira, dezembro 01, 2006 5:06:00 da tarde  
Blogger Nelson Peralta said...

Estava para encaixar essa temática entre o 1º e o 2º parágrafo, mas não cabe tudo :)

A situação dos híbridos é bastante grave. Para além de outros problemas, a quebra da biodiversidade torna o vegetal em causa bastante vulnerável a pragas, o que se poderá reflectir numa crise alimentar de um momento para o outro. (Mas não se preocupem, os produtores Canadá e os EUA sabem disso e tem reservas de cereais para esse efeito, o resto do globo é que não).

Economia... Os híbridos têm pouca e débil descendência, pelo que é necessário comprar todos os anos sementes! A Índia recusou ajuda da Monsanto exactamente porque iria ficar refém das suas sementes anualmente.

O principal responsável pelos tomatinhos todos iguais é Sicco Mansholt, "pai" da política agrícola comum.

Um dos meus ambientalistas preferidos é exactamente o mesmo Mansholt, que anos mais tarde reconheceu que fez um grande erro e sugeriu bastantes medidas para os remendar. Mas já tinha saído da Comissão Europeia, e as coisas que ele propôs não cheiravam a dinheiro. Das suas medida, a minha preferida cheirava a felicidade :)

Por falar nisso, numa clara violação da lei, deixei a fotocopiar um livro dele (e de outros autores), velho e de uma editora falida! E para arranjar aquele exemplar já foi uma trabalheira. Há livros que caminham para a morte.

sexta-feira, dezembro 01, 2006 6:52:00 da tarde  

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