Riqueza Insuflável
[publicado no Diário de Aveiro, 23 de Fevereiro de 2006]
O Bloco de Esquerda apresentou ontem no Parlamento um projecto-lei que «define a cativação pública das mais-valias urbanísticas como medida preventiva de combate ao abuso de poder e à corrupção».
Actualmente, a transformação do estatuto de um terreno agrícola em urbanizável gera uma imensa riqueza proveniente do nada. Há casos onde esta valorização do terreno chegou aos 20 mil por cento. A presente proposta visa a cativação pelo Estado das mais-valias decorrentes dessa súbita valorização e a sua posterior redistribuição pelas autarquias através do Fundo Social Municipal.
Com a actual legislação, as Câmara Municipais decidem a riqueza de um proprietário de terreno e o infortúnio do proprietário seu vizinho. Nenhuma razão o justifica. Um hectare tem a mesma área quando é para agricultura ou quando se torna susceptível para a construção. A única alteração entre um e outro é uma mera decisão administrativa levada a cabo por uma autarquia. Neste processo nada foi produzido, nenhum esforço foi desenvolvido, nenhum trabalho foi efectuado, nenhuma riqueza foi originada, nenhum contributo para a sociedade nasceu.
Esta não regulamentação faz com que o Estado discrimine os seus cidadãos. Não é admissível que o Estado, no processo de planeamento do seu território, confira uma riqueza imediata a um cidadão (conferindo o estatuto de terreno urbanizável) em detrimento do seu proprietário vizinho que até deixa de ter um local para edificar a casa do filho (conferindo um estatuto de terreno agrícola).
Um proprietário confrontado com aquilo que lhe parece uma boa oferta vende os seus terrenos agrícolas. O comprador recorrendo a práticas ilegais – informação privilegiada, tráfico de influências, corrupção e outras – vê os terrenos adquirirem o estatuto de urbanizáveis e valoriza milhares de vezes o seu investimento em poucos anos. Enquanto isso o antigo proprietário tem o dinheiro da venda no banco com parcos juros. Este é um cenário fictício mas que ocorre e que, com a actual não regulamentação do uso do solo, se torna bastante proveitoso e rentável.
O Estado, ao efectuar a cativação da mais-valia nada está a retirar a ninguém, já que estas residem nos serviços camarários e nas suas decisões administrativas e não no terreno nem no proprietário. Logo apenas não se efectuaria a sua distribuição pelos terrenos. Faz todo o sentido que, já que estas mais-valias urbanísticas são do Estado, aí permaneçam e sejam usadas em prol do bem público e não atribuídas de forma discriminatória aos cidadãos.
O solo é um recurso e não uma mercadoria, uma vez que não se produz nem se reproduz. Portanto, tratando-se de um bem limitado, alguém ao deter solo está a originar a sua depleção para a concorrência, ocupando uma posição competitiva privilegiada em relação aos demais. Todos os países do chamado mundo desenvolvido já reconheceram a importância desta regulamentação e já a aplicaram. Portugal continua a ser excepção.
Em suma, a regulamentação proposta visa retirar a pressão de promotores imobiliários sobre o poder local, tornar o planeamento do território efectivo e acabar com a discriminação que o Estado exerce sobre os seus cidadãos no que toca ao uso dos terrenos e à riqueza que daí advém. Para além do presente e de outros projectos-lei seus de combate à corrupção, o Bloco de Esquerda também apresentou ontem alguns dos projectos elaborados com o mesmo propósito pelo deputado João Cravinho, que entretanto aceitou a ida para Londres.
1 Comments:
Gosto de observar e perceber as conexões entre as formigas e o formigueiro.
É preciso ir mais longe na análise e pensar as questões pelo seu conteúdo e se houver algo a fazer. Agir para melhorar.
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