Pontapé na Argumentação
[publicado no Diário de Aveiro, 5 de Janeiro de 2007]
Há uns dias encontrei um texto intitulado “Aborto. Sim ou não.” afixado por toda a Universidade de Aveiro. Neste texto a despenalização da interrupção voluntária da gravidez é comparada a “um indivíduo pontapeia uma mulher grávida, com menos de 10 semanas de gestação, provocando um aborto não espontâneo”. Este texto termina com o apelo “ajude a fundar o novo núcleo de acção cristã desta universidade actualmente composta, por uma único pessoa”.
Apesar de existirem partidos e movimentos legalmente constituídos para a campanha do SIM e do NÃO, na comunicação social o maior relevo e destaque é atribuído às declarações da hierarquia da Igreja Católica. No primeiro dia do ano o Papa comparou o aborto ao terrorismo. Em Portugal, no mesmo dia e pelo mesmo diapasão, o Cardeal de Lisboa sugere que o aborto prejudica a paz.
Nada tenho que comentar a vida interna de organizações de cariz religioso, mas neste caso a instituição em causa está a tentar influenciar a política do país, que se aplica quer aos seus adeptos como a toda a restante população.
Não me surpreende que, quer o texto do movimento de uma só pessoa quer as afirmações da hierarquia da Igreja Católica, nunca refiram dois pontos sobre os quais o referendo de facto incide. O recurso ao aborto continuará a existir caso ganhe o NÃO e tudo se mantenha igual. O referendo não pergunta a nossa postura moral sobre o aborto, mas sim como a sociedade deve reagir perante esta prática que existe e existirá. Portanto, nesta situação qual a resposta destes senhores para o problema: em primeiro, a prisão da mulher; em segundo, força-la à prática do aborto em condições abjectas de saúde e higiene.
Estes senhores abandonaram a argumentação e a discussão séria. Preferem espalhar o medo e a irracionalidade com as comparações ao pontapé, ao terrorismo e ao atentado à paz.
Eu, e certamente os restantes defensores do SIM, não queremos enveredar pelo mesmo caminho. Portanto, ao contrário destes senhores que nunca deram resposta aos dois pontos que referi acima e que abandonaram a discussão com os atentados e os prejuízos para a paz, vou debater os seus argumentos.
A sua discussão assenta na crença dogmática de que a vida começa na concepção, isto é, que começa com uma única célula resultante da união entre o espermatozóide e o óvulo. Contudo esta questão não está presente no actual referendo. A resposta a esta questão já foi dada em 1984 pela lei actual. A lei actual já prevê a interrupção voluntária da gravidez até às 16 semanas no caso de violação e até às 24 semanas em caso de má formação ou doença grave do nascituro.
A hierarquia da Igreja Católica quer fazer passar a vida do embrião como um valor absoluto. Caso fosse considerado um valor absoluto, o feto de 16 semanas resultado de uma violação ou o de 24 semanas com má formação, teriam tanto direito à vida como o embrião de 10 semanas. Nessa lógica o direito à vida resultante de uma violação teria o mesmo valor absoluto que o direito à vida resultante de uma relação sexual consentida. A sociedade assim não entende, reconhecendo todos os relativismos em jogo.
A postura absolutista da hierarquia da Igreja Católica apresenta incongruências já no que toca a uma gravidez de risco opta pela vida do embrião arriscando a da mulher. Esta hierarquia também admite o direito à legítima defesa esquecendo o absolutismo neste ponto para reconhecer os relativismos. Nos restantes cenários do aborto a referida hierarquia adopta uma posição coerente já que se opõe claramente à prática de aborto em qualquer situação, mesmo nas previstas pela lei: violação, má formação, doença grave e mesmo em caso de risco de vida para a mulher.
O leitor, independentemente da sua crença religiosa, concorda com a posição absolutista assumida pela hierarquia da Igreja Católica que obriga uma mulher violada a levar a gravidez até ao fim? Este ponto não está incluído na pergunta do referendo, mas é a base de argumentação da referida hierarquia na campanha que está a realizar.
7 Comments:
Acho que não deves debater os argumentos da Igreja Católica (coisa que tb já fiz, é fácil encontrar incoerências)___ para não cair no risco da validação de todos os relativismos. Ficaria pela questão discutida de facto neste referendo, como evidencias no início do teu texto.
Não sei se por esta altura já visitavas o Divas:
-http://divasecontrabaixos.blogspot.com/2006/10/sim-ou-no-questo-do-aborto.html
-http://divasecontrabaixos.blogspot.com/2006/10/sim-ou-no-questo-do-aborto-2.html
-http://divasecontrabaixos.blogspot.com/2006/10/sim-ou-no-questo-do-aborto-3.html
-http://divasecontrabaixos.blogspot.com/2006/10/sim-ou-no-questo-do-aborto-4.html
Acabei de ler os seus textos sobre a IVG, no geral concordo excepto com dois pontos: a admiração por Guterres e a posição da lei face ao homem.
Eu já escrevi 2 artigos no Diário de Aveiro e certamente até ao referendo escreverei mais. Nesses 2 primeiros centrei a questão no essencial.
Agora, esclarecidos os pontos iniciais, considerei adequado responder às declarações de "terrorista", dar resposta ao argumento dogmático da vida e demonstrar que não é essa a questão.
Enquanto membro de um partido entendo que nada tenho que opinar sobre a vida e opinião de uma hierarquia religiosa. Contudo neste caso a ingerência é a inversa, e é essa ingerência no Estado que comento.
Espero nunca ter que o fazer. No passado apenas o fiz por uma vez, publicando um artigo de resposta [link] a um artigo do antigo Bispo de Aveiro que atacou directamente um projecto-lei do BE sobre o divórcio. E que mal me senti ao ter que defender o direito ao divórcio em pleno séc. XXI.
Seu terrorista! :P
Viva:
É consenso geral de que mulher séria é aquela de quem menos se fala.
O contrário também é verdade.
A não perder, no Estados Gerais, o video que sofreu a censura da justiça brasileira que, deste modo, colocou o país a ridículo na cena internacional no que á liberdade de informação diz respeito.
Urgente, antes que o boicotem... apesar de não ser nada de especial, bem pelo contrário.
Cumprimentos,
Gostava muito de comentar estes últimos assuntos (como por exemplo, o folheto que encontraste, e o teu artigo no jornal), mas não o vou fazer.
Acho que um tête-à-tête era mais proveitoso, do que trocar opiniões pontuais aqui neste blog.
Como te disse uma vez e volto a repetir, a minha orientação política, já a sabes, mas isso não me impede de ter uma opinião, uma vontade, que nada tem a ver com um partido, uma doutrina ou uma religião. Acho que falta inteligência no nosso país! Se calhar está relacionado com o facto de estar quase toda a emigrar!
Abraços
ps: eu conheço os "novos" políticos que vêm substituir os "velhos"... e não estou nada contente...
guru(san),
Este artigo é apenas a resposta a declarações e a um papelinho, não é a minha posição sobre o aborto nem o essencial da discussão.
Como já defendi noutros artigos aqui do blog, DA e na rádio, os dois pontos essenciais são:
-- fim da prisão;
-- condições de saúde e higiene para a sua realização.
A prática de aborto existirá sempre, o que está em causa é a resposta da sociedade a essas mulheres e não um juízo moral sobre a prática. Como é óbvio devem ser feitos todos os esforços para que o recurso à prática seja reduzido ao mínimo.
Ah, e por acaso nesta questão em concreto não sei a tua opinião apesar de conhecer a tua orientação política geral.
Enviar um comentário
<< Home