quarta-feira, junho 09, 2010

"Um belo momento de revisão da nossa história recente"

Hoje há crianças vestidas de Mocidade Portuguesa em Aveiro.

Há algumas semanas, motivado por várias queixas de pais, o Bloco de Esquerda questionou o Ministério da Educação sobre as cerimónias do Centenário da República onde crianças do terceiro ano de escolaridade (em média 8/9 anos) iriam vestir a farda da Mocidade Portuguesa e entoar os seus cânticos.

A professora responsável reagiu desmesuradamente à pergunta do Bloco e, ainda hoje, confunde as suas funções com as da Ministra da Educação, considerando que um deputado lhe deve fazer perguntas sobre a política educativa do Governo e não ao Ministério. A professora esclarece-nos hoje: a iniciativa "não foge aos nossos deveres enquanto professores de transmitir aos alunos valores que sejam representativos do nosso país e que lhes mostrem o que é Portugal neste momento".


A vereadora da cultura Maria da Luz Nolasco (CDS) declarou a solidariedade da câmara municipal à iniciativa. A posição da Câmara não é de estranhar já que em 2008 celebraram intensamente o regicídio como uma iniciativa que o site da autarquia assim retrata: "Destinado aos alunos do Primeiro Ciclo das escolas do Concelho, será explicado o termo regicídio e o seu significado nos dias 7 e 8 de Fevereiro, às 10.30 horas, através da apresentação “Infames! Infames! Que matam o Rei"

Porventura para lavar a alma do projecto, os responsáveis realizaram uma conferência de imprensa ironicamenteno dia da conferência de dia, há 40 anos, o historiador José Hermano Saraiva era substituído como Ministro da Educação do Estado Novo. Note-se que esta conferência de imprensa foi convocada pelos responsáveis do projecto, apenas contou com a sua voz e foram exactamente as suas palavras a amplificar a polémica sobre este "belo momento de revisão da nossa história recente", como diz o director do agrupamento de escolas. Isto diz muito sobre o carácter da iniciativa e que quer a vereadora quer a professora estavam enganadas quando garantiam que a polémica estava ultrapassada.



Vários órgãos de comunicação social locais e nacionais fizeram eco da iniciativa e das questões que levanta, e a discussão foi alargada a alguns blogues - nomeadamente dos mais lidos do país - e às redes sociais. O Diário de Aveiro foi contudo singular a nível nacional, sendo o único a estar na loja de porcelanas e a não ver o elefante, reproduzindo acriticamente a apresentação do projecto nesta bela composição escolar

Devo dizer que aprecio a discussão em curso a nível nacional. Há quem diga paradoxalmente que o BE pretende apagar esta página da História. O argumento apresenta duas falhas. Primeiro, ignora os esforços e a posição da esquerda relativamente à preservação da memória histórica, por exemplo, na luta contra a transformação da antiga sede da PIDE num condomínio fechado. Em segundo e mais importante, evidentemente que a esquerda não quer meter o Estado Novo debaixo do tapete, muito pelo contrário. Deve ser discutido e debatido. Mas colocar crianças a marchar de Mocidade Portuguesa é um insulto a todos aqueles que lutaram e morreram pela liberdade.


Mas mais que as falhas e este caso concreto, o argumento mostra-nos a incapacidade de pensar e discutir a História sem a tornar numa encenação carnavalesca. A representação carnavalesca é a única forma que as entidades públicas conhecem para abordar a História. Se nalguns concelhos se transformam feiras medievais em arraiais da febra, em Aveiro usam-se crianças para higienizar e relativizar o Estado Novo.

A situação é tanto mais grave já que se estão a usar crianças de 8/9 anos para se fantasiarem de Mocidade Portuguesa. Crianças que "são acríticos perante a História, porque não têm ainda capacidade para reflectir sobre a evolução histórica do nosso país" como diz o Pedro Filipe Soares. Representar a III República com o We are the world, remetendo para a fome no mundo, e a ditadura com meninos assepticamente vestidos de Mocidade Portuguesa é revisão histórica como afirma o coordenador escolar. Mais que a falta e liberdade de expressão, a censura, os presos políticos, a fome e a miséria o Estado Novo é caracterizado pelos meninos "escuteiros".


Há quem sugira que em Aveiro só haveria indignação da escola se uma professora se fotografasse nua. Aqui o Carnaval é diferente. Obviamente que o equivalente a esta iniciativa seria impensável em praticamente todos os países do mundo. Em Portugal assim acontece porque de facto esse período histórico é escondido e quando vem à superfície é nestes belos trajes. E isso acontece porque a classe dominante de hoje é ainda em grande medida a classe dominante do regime fascista. É por isso que a direita não vê qualquer problema em inaugurar a 25 de Abril a Praça António de Oliveira Salazar, é que também muitos dos representantes da classe dominante se recauchutaram.

Resta-nos a enigmática declaração da professora responsável de que "nada neste projecto leva para ideias de fascismo"...

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8 Comments:

Blogger Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

Nelson, acho má ideia as fardas da Mocidade Portuguesa. Eu não deixaria que as minhas filhas as usassem. Mas conviria conhecer o projecto todo associado ao desfile antes de generalizar. As minhas filhas "vestiram-se" de República e deram vivas à recriação da sua proclamação. No antigo cine-teatro Avenida, evocaram-se os congressos democráticos. A escola das Barrocas lá trouxe os lusitos e lusitas que, no final, atiraram com as camisolas ao ar. Não sei, é claro, o que foi explicado às crianças - e isso é muito importante. Mas, neste dia, cantei a Grandola Vila Morena, e a Tourado do Tordo.

A polémica poderia ter sido salutar mas não foi.

Quanto ao impacto nos media e blogosfera que a pergunta do Pedro Soares suscitou, pergunto-me por que será. Afinal, existem tantas intervenções válidas dos bloquistas que não são publicitadas! A resposta é simples: crianças a serem supostamente manipuladas é coisa que vende bem. O pp BE deveria separar o trigo do joio na nossa comunicação social. O empolamento nos media foi patético. Eu estive no desfile. Não senti nenhuma corrente pró-fascista no ar (só chuva!). Um abraço

quarta-feira, junho 09, 2010 6:34:00 da tarde  
Blogger Nelson Peralta said...

Maria,

Concordo com a tua posição sobre crianças vestidas de Mocidade. E já li na imprensa que a coisa terá sido um pouco alterada face à polémica, o que é elucidativo.

A dimensão do impacto mediático e blogosférico, como digo aqui, deve-se aos responsáveis da iniciativa e ao que disseram na conferência de imprensa que convocaram, onde obviamente foram confrontados com a pergunta do Bloco que já tinha 3 semanas. A informação difundida foi a que saiu daí.

Na imprensa só acho ridículo no dia de hoje o destaque em relação ao desfile é que se processou sem incidentes! Não era absolutamente expectável? Que esperavam?

Não me parece que a discussão tenha sido assim tão pobre. Pudemos ver novamente a quantidade de saudosistas anónimos que pululam nos comentários dos jornais, o que num período de crise social diz muito. Mas também tivemos várias pessoas a discutir as questões mais centrais. Pena que a discussão sobre a nossa relação com a História não seja mais continuada e aprofundada. Podemos aliás tomar um café um dia destes com essa ordem de trabalhos :)

quarta-feira, junho 09, 2010 11:10:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Vejam este video sobre esses tempos do fascismo português, marchas com a Juventude Hitleriana e os fascistas italianos balilas e os espanhois!

http://www.youtube.com/watch?v=Gcl_b6-kXiA

sublime

quinta-feira, junho 10, 2010 12:59:00 da manhã  
Blogger Zé Bonito said...

Deixo aqui a pergunta que me apeteceu fazer desde que ouvi falar nesta história: que tem a Mocidade Portuguesa (criada nos anos 30) que ver com o centenário da República?

quinta-feira, junho 10, 2010 1:50:00 da manhã  
Blogger João Dias said...

A história não é neutra, como todos os produtos humanos tem referencial e relatividades do observador.
Nem a história pode ser completamente neutra, e neste momento como celebramos a república só poderíamos ter uma visão pedagógica e crítica sobre o regime fascista de Salazar. A própria celebração da República não é uma acto neutro...ou alguém pensa que se celebra só porque sim. Ainda bem que não é neutra, porque devemos celebrar os valores democráticos e preservar a memória das vitórias e lutas para conseguir chegar até esta inacabada democracia.

À semelhança da economia, o cariz científico que se quer fazer crer nas doutrinas apenas esconde a sua essência e serve para manter a hegemonia do status quo. A economia tem opções (que não são somente as de João Duque, Belmiro Azevedo, Presidente da CIP...), a história também tem visões para a mesma realidade...

Há dois aspectos essenciais que mereciam mais debate:

> O Estado Novo não foi uma interrupção da República?

> A apresentação de um regime ditatorial num registo folclórico não retira a tal memória histórica que era suposto evocar de opressão, de Clericalismo, de ausência de pluripartidarismo...etc

> As crianças tem percepção do que estão a representar? Será que nestas idades, por muita boa vontade dos professores, as crianças têm mesmo uma verdadeira noção do que estão a representar? Não tendo essa percepção a iniciativa tem a tal utilidade de evocar memória histórica ou corremos o perigo que eu descrevo no ponto anterior?

quinta-feira, junho 10, 2010 12:35:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Sr Bloquista Nelson Peralta, não aceita que a Mocidade Portuguesa e outras Instituições têm o seu lugar na NOSSA HISTÓRIA e como tal não podem ser ignoradas e esquecidas?
"Esquecido" e "limpo" devia ser, pelos Historiadores, este triste período recente do nosso País, desgovernado sucessivamente por "idiotas" que nos conduziram a esta plena falta de valores, a esta corrupção generalizada e impune, a esta ganância desenfreada que depaupera os que trabalham honestamente e os chupam até à medula!
Por muito que "berrem" só a "carneirada" vos ouve!...
Zé de Aveiro

quinta-feira, junho 10, 2010 6:38:00 da tarde  
Blogger Luís Maia said...

A ditadura não é República, porque a sua própria definição não se coaduna com os ideias republicanos.

em tempos de ecumenismo nada para o promover como relembrar a matança da Igreja de São Domingos, ou o assassinato de judeus em massa por D.João II.

O destino que D.João II deu aos filhos menores dos judeus, enviado-os para a ilha de São Tomé, depois de baptizados e "apartados das suas famílias para que fossem bons cristãos" e em crescendo pudessem povoar a ilha.

Os que não tinham dinheiro para abandonar o País, foi fácil a solução, foram vendidos ou oferecidos como escravos.

Nada como celebrar o fim da 2º guerra mundial,que promover um desfile de putos fardados de SS.

quinta-feira, junho 10, 2010 7:11:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

No rescaldo desta polémica,num balanço de perdas e ganhos, tenho sinceras dúvidas se o Bloco ganhou mais ou perdeu mais. Certamente não ganhou se a percepção pública da posição do Bloco foi entendida como de hostilização da Escola, acusada de atitude "laudatória" relativamente ao regime fascista, o que é difícil de entender quando a representação vai da monarquia, ao regicídio, à República, passa pelo Estado Novo, pela Resistência e pelos Congressos Democráticos e culmina no 25 de Abril. Se, pelo contrário, as críticas do Bloco foram percepcionadas como uma chamada de atenção para os riscos da"representação carnavalesca" da História, para a exaltação da visão lúdica (num momento em que a sua presença nos curricula é fortemente atacada - a História enquanto campo de análise da diversidade da experiência humana é perigosíssima para aqueles que dominam)então o Bloco está de parabéns.Incentivar a "carnavalização" da História ao mesmo tempo que se combate e diminui a sua presença no currículo escolar é que é estranho, ou talvez não.A representação meramente lúdica tende a tornar tudo igualmente divertido, não hierarquiza, tende a pôr tudo ao mesmo nível, a "naturalizar" todos os acontecimentos. Ontem como hoje nem tudo é natural, nem tudo tem o mesmo valor. Mesmo uma representação simbólica nunca é neutra. Tudo depende da forma e do conteúdo da mensagem. Não se podem tratar ao mesmo nível os Congressos da Oposição Democrática ou a festa do 25 de Abril e uma "organização nacional e pré-militar" (Lei nº1941 de 11 de Abril de 1936)que socializava as criancinhas com menos de 12 anos nos valores da obediência aos chefes através de tardes inteiras de "ordem unida" (um, dois, esquerdo direito, em frente marche, direita volver)devidamente enquadrados por "chefes de quina" e "comandantes de castelo" que eram verdadeiros modelos de virtude - normalmente alunos mais velhos, cábulas, com repetências no currículo que exerciam a sua autoridade através do insulto e do cachaço quando algum miúdo distraído trocava o passo. Era normalmente com métodos pedagógicos destes que se aprendiam os valores patrióticos do regime.A mitificação asséptica é uma deturpação da realidade, inimiga da História, da inteligência e do ser humano.

sexta-feira, junho 11, 2010 1:42:00 da manhã  

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