quarta-feira, abril 21, 2010

Cochabamba

Publicado no esquerda.net


A América Latina tem invariavelmente concedido os seus serviços públicos e os seus recursos naturais aos desejos vorazes de concentração de riqueza. Carlos Slim é o mais rico entre todos os ricos do planeta e assim o é à custa da privatização da companhia de comunicações do México. Eike Batista, ocupa a oitava posição da lista e foi quem mais enriqueceu no último ano graças aos seus negócios com recursos naturais. Slim e Batista são a face desta política, assim como o são os milhões de excluídos do acesso aos serviços e bens mais elementares à vida.

Há dez anos, em mais uma destas histórias, o Banco Mundial declarava que só renovaria o empréstimo à Bolívia se esta privatizasse o serviço de abastecimento e saneamento de águas. O governo boliviano, liderado por Hugo Banzer - antigo ditador, entretanto eleito Presidente - acedeu, fabricou uma lei especial para o caso e concessionou as águas da cidade de Cochabamba ao único consórcio licitante.

A nova lei concedia ao consórcio o monopólio da água, com possibilidade de reivindicar o direito às fontes e aos sistemas comunitários de abastecimento, alguns dos quais construídos originalmente no Império Inca. O consórcio não se fez rogado e aumentou imediatamente os preços do abastecimento para valores incomportáveis para a população já de si pobre.

O resultado foram uma série de confrontos sociais conhecidos como a Guerra da Água de Cochabamba e que, apesar da declaração de estado de sítio, da violentíssima repressão policial e militar e da revogação do aumento do tarifário da água, se foi alastrando a outras regiões do país e a outras exigências sociais na área da economia e do emprego e durou vários meses só terminando quando a privatização foi anulada e o sistema de águas foi entregue à comunidade em Abril de 2000.

Volvida uma década, parte da América Latina mudou. As políticas geradoras da desigualdade social e de proliferação de oligarcas já não são uma inevitabilidade. Na Bolívia um manifestante desse conflito social, Evo Morales, ganhou as eleições presidenciais precisamente ao Alcalde de Cochabamba da altura e convoca agora a Conferência Mundial dos Povos sobre as Alterações Climáticas e os Direitos da Mãe Terra para essa cidade. Aí se reúnem esta semana activistas e movimentos sociais, ambientalistas e campesinos.

Não podemos esperar mais. O planeta não pode esperar mais. Enquanto sociedade, exploramos os recursos do planeta acima do sustentável. Esse processo de exploração não é dirigido para as necessidades de todos nem os seus resultados são repartidos por todos. Criamos assim problemas climáticos e simultaneamente distributivos. Quem menos contribuiu para o aquecimento global é quem mais sofrerá com ele, seja pela sua localização geográfica seja porque não beneficiou desse enriquecimento e não dispõe de mecanismos de sobrevivência.

A Conferência dos Povos parte do reconhecimento destes problemas ambientais, distributivos, e da dívida ecológica. Recusa porém a guerra e a ocupação de mercados e territórios, pelo controlo de água e recursos energéticos, como resposta à crise ambiental. O seu principal objectivo é a democratização, nomeadamente através de um referendo mundial que dite a estratégia perante as alterações climáticas, da criação de um tribunal para a justiça climática, da criação da Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra e da criação de um organismo paralelo às Nações Unidas para reforçar políticas ambientalistas.

Poderemos ainda estar longe de um movimento democrático de massas, mas Cochabamba liberta a discussão do jugo do mercado e dá voz a quem a deve ter: os povos, cidadãs e cidadãos de todo o planeta. É tempo para uma economia que nos sirva a nós e à natureza, e não que se sirva de nós e da natureza.

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