quarta-feira, março 24, 2010

A Marcha da Hipocrisia

Publicado no esquerda.net


A Live Earth, criada por Al Gore e pelo produtor e empresário dos media Kevin Wall, organizou a propósito do dia da água mais um evento à escala mundial. Em várias cidades de todo o planeta, para além de concertos e actividades educacionais, as comunidades locais foram envolvidas em caminhadas de 6 km, a distância média que muitas mulheres e crianças fazem todos os dias para obter água potável.

A "The Dow Live Earth Run for Water" realizada nas vésperas do dia mundial da água, deve o seu nome ao patrocinador, a The Dow Chemical Company, e tem como objectivo alertar para o problema e recolher fundos.

Tudo muito ambientalmente correcto, não fosse a Dow uma das empresas que mais terá contribuído para a poluição das águas do planeta. A Dow é hoje a proprietária da Union Carbide que em 1984, devido a uma fuga na sua fábrica em Bhopal (Índia), terá provocado a morte a 15 mil pessoas. Hoje em dia, 100 mil pessoas continuam a sofrer problemas de saúde em resultado do acidente, sem o devido tratamento ou compensação, vivendo na penúria e sem que o meio ambiente tenha sido devidamente descontaminado.

Contudo, e apesar dos esforços persistentes de ONG's, a Dow não assume qualquer responsabilidade pela fuga, pelas suas consequências ou pela poluição resultante da fábrica. A Amnistia Internacional chegou mesmo a requerer uma investigação à Dow face ao que considera serem pressões inaceitáveis da empresa sobre o Governo Indiano para se livrar das suas responsabilidades legais na catástrofe química de Bhopal.

Mas a actividade da Dow é bastante vasta. Foi uma das produtoras do famoso agente laranja (herbicida utilizado na guerra do Vietname, com consequente impacto ambiental e na saúde de militares norte-americanos e da população vietnamita) e, um pouco por todo o globo, tem um enorme historial de contaminação de águas e do meio ambiente.

Agora, esta empresa descobriu um novo nicho de mercado: o tratamento de água! Nada melhor do que ganhar dinheiro com a poluição que lhe permitiu acumular lucros à custa do ambiente e da saúde das populações. Necessita portanto de lavar, perdão, reconverter a imagem, que saí certamente mais barato que limpar o seu rasto de caos e destruição.

Esta Marcha assume transversalmente um carácter de higienização da opinião pública. Não deixa assim de ser curioso que, para além de toda a mediatização, a página inglesa da wikipedia sobre esta iniciativa tenha sido recentemente alterada, retirando as referências ao alarme público que o patrocínio da Dow provocou.

A Marcha pela Água decorreu nas maiores cidades mundiais, por vezes com a legitimação de um apoio institucional, mais ou menos directo. Em Portugal, a iniciativa teve o seu ponto alto em Estarreja, onde foi co-organizado com a Câmara Municipal local onde a empresa tem uma fábrica.

A legitimação institucional eleva a propaganda a outro patamar, e aí nem a autarquia quis ficar de fora. Aproveitando o balanço, a Câmara Municipal anunciou que iria assinar a petição para que o acesso à água seja consagrado como um direito básico na Declaração dos Direitos Humanos da ONU. Isto apesar de há poucos meses a CM Estarreja ter aderido a uma nova parceria para o abastecimento e saneamento das águas, que vai exactamente no sentido oposto, tratando a água como uma mera mercadoria e preparando a sua concessão a privados.

Refira-se ainda que, por duas vezes, o BE apresentou na Assembleia da República uma proposta para a realização de um estudo epidemiológico no concelho de Estarreja, para aferir se as doenças com causas ambientais - como o cancro - terão aí uma maior incidência que no resto do país. A existência de um grande complexo químico, onde aliás se situa a Dow, e os dados empíricos justificam que se averigúe a situação, seja para tranquilizar a população ou para garantir uma resposta mais eficaz às causas, à detecção e ao tratamento dessas doenças. Contudo, esta proposta tem sido inviabilizada por PS/PSD/CDS-PP com o silêncio cúmplice da Câmara de Estarreja e do seu Presidente.

De facto, o verde lava mais branco, mas certamente que merecemos um poder público que pugne pela defesa dos interesses da população e não que se comporte como mero relações públicas do poder económico, seja por omissão seja por acção.

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