domingo, fevereiro 26, 2012

Eleftherotypia, o jornal dos trabalhadores

De Atenas, para o esquerda.net e beinternacional

Eleftherotypia significa “escrita livre” em grego e é exactamente isso que os trabalhadores grevistas deste jornal têm feito. Sem salário desde Agosto e em greve desde Dezembro rejeitam o plano de falência proposto pela empresa e recusam baixar os braços. Lançaram mãos à obra e produzem à revelia o seu próprio jornal “Os trabalhadores”, que se tornou o mais lido do país. Esta é a luta dos jornalistas que revelaram alguns dos mais importantes escândalos financeiros e políticos do país.
O segundo maior jornal do país vai à falência

A empresa, constituída pelo jornal e por um serviço de tipografia e edições, emprega 800 trabalhadores, dos quais 240 jornalistas. Era o segundo jornal mais lido do país, com 25 a 27 mil vendas da sua edição diária, 35 a 40 mil na edição de sábado e um recorde de 60 a 80 mil na edição de domingo. Contudo, não conseguiu escapar à crise. A situação económica levou ao estrangulamento da publicidade estatal, bastante relevante na área do turismo e da lotaria, e não só. “A difícil situação económica do jornal era real”, avalia Georges Gouros, contabilista do jornal. “Mas não estamos a falar de uma excepção, nenhum jornal resistiu à crise, nenhum diário dá lucro”.

Então, porque é que apenas o Eleftherotypia foi à falência? Tem uma especificidade, as suas proprietárias não tinham atividade noutras áreas, apenas detinham a empresa. De resto, a maioria das restantes publicações pertence a grupos económicos onde o foco são outros negócios. Podem assim tapar o prejuízo dos jornais para os manter, dado que são importantes para pressionar a sociedade e o governo, por exemplo para obter contratos estatais. Um dos principais jornais da Grécia, por exemplo, é detido pelo dono da maior empresa de construção do país. A crise deixa assim a liberdade de imprensa mais exposta a interesses económicos.

Com a crise, deixaram de receber salários em Agosto. Em Dezembro decidem-se pela greve. Pelo caminho rejeitaram um plano de falência para a empresa, decidindo lutar pelos seus postos de trabalho. Até ao momento, só receberam 500 euros a semana passada do sindicato dos jornalistas (ESIEA) e dos sindicatos dos outros sectores envolvidos. De resto, sobrevivem das poupanças, mas há quem tivesse salários demasiado magros para poder poupar.

A prioridade é o posto de trabalho

A princípio ficaram na sede do jornal mas a direção tinha outros planos: cortou os telefones, a internet e fechou o sistema informático negando-lhes assim o acesso a tudo o que já tinham escrito. Viram-se forçados a abandonar o edifício, entretanto selado e onde agora apenas se encontra a segurança. Os trabalhadores ainda se deslocam regularmente à sede na esperança de boas notícias, mas até ao momento nada. Também este edifício parece não sobreviver à crise. Imponente, este exemplar de brutalismo em betão e vidro espelhado no meio de uma zona residencial faz lembrar uma fortaleza, era parcialmente alugado a outras empresas. Agora está completamente vazio.
Katia Antoniadi, 28 anos, editora para as políticas ambientais, fala cinco línguas de três alfabetos diferentes e, sentada entre vários colegas da publicação grega, vai-nos guiando em português pela história do jornal. Para si, a prioridade é o posto de trabalho. “Quero ter um trabalho e um salário”, realça. Os 800 profissionais organizam-se e procuram desenvolver um plano de reabilitação da empresa. A tarefa é dificultada pela total falta de cooperação das proprietárias que sonegam a informação financeira do jornal.

Vários profissionais do Eleftherotypia retratam o jornal como um dos mais liberal do país, no sentido em que na mesma página se podiam encontrar colunas expressando ideias diametralmente opostas e em que os editores não impunham uma linha aos jornalistas. Formado logo após a queda da ditadura dos coronéis constituía uma uma ruptura com o jornalismo desses tempos.

Um jornal com tradição na investigação

Quando se viu perante dificuldades, foi pedido um empréstimo à banca para viabilizar a empresa. O pedido acabou contudo por ser rejeitado por todos os bancos. A isto não será alheio a descoberta e divulgação de vários escândalos económicos e políticos na sociedade grega. A aposta na investigação saí cara e a crise coloca-a em causa.

O Proton é um banco grego que opera acima de tudo no segmento de investimentos. O seu proprietário é também dono da maior farmacêutica do país e não se queixa de falta de liquidez. O banco está sob investigação por alegadamente ter desviado mil milhões de euros num esquema de lavagem de dinheiro, fraude, apropriação indevida e recurso a testas-de-ferro em offshores. Não obstante tudo isto, em Outubro de 2011, o governo grego usou 1,3 mil milhões de euros do fundo de “resgate” para nacionalizar os prejuízos deste banco. Foi o Eleftherotypia que descobriu que ao mesmo tempo que procedia a esta nacionalização, o Ministro das Finanças, Evangelos Venizelos – o homem de confiança da troika no país –, publicava uma lei que o ilibava a si próprio de qualquer responsabilidade civil ou financeira caso se demonstrasse que uma decisão deste género prejudicava o país (mesmo que o titular disso tivesse consciência e conhecimento). A lei vai ainda mais longe e é das poucas com efeitos retroativos no país: todos os Ministros das Finanças desde 1997 estão a salvo das suas próprias decisões.

Em 2008 tinha já rebentado outro escândalo. O Eleftherotypia noticiava uma troca de terrenos entre o Estado e o Mosteiro de Vatopedi onde o património público era lesado em 100 milhões de euros. O negócio foi cancelado, dois ministros demitiram-se e constituíram-se duas comissões parlamentares para investigar o caso. Contudo, o caso foi abafado e três anos volvidos não há quaisquer resultados das comissões de inquérito ou dos processos judiciais. Repare-se que a Grécia é o último país europeu com uma ligação fundamentalista entre o Estado e a Igreja. As propriedades da Igreja Ortodoxa são incontáveis, assim como os negócios entre ambos. Até a Praça Syntagma no centro de Atenas, em frente ao Parlamento, e onde decorrem todos os protestos é sua. O Estado paga uma renda à Igreja pela sua utilização.

Jornal “Oi Ergazomenoi” (Os Trabalhadores) pela segunda vez nas bancas

Saiu ontem pela segunda vez o jornal organizado pelos grevistas do Eleftherotypia. Com o custo unitário de um euro o jornal “Oi Ergazomenoi” (Os Trabalhadores) que reverterá para os trabalhadores, tem como tema de capa a “Europa sem futuro”, “a crise destrói a sociedade” escrevem. Nas páginas interiores onde o tema é desenvolvido em quatro páginas, o jornal titula em duas delas que “Portugal: o bom aluno treme”. A ilustrar uma foto de uma rua portuguesa onde se poder ler o anúncio “Compramos ouro usado – pagamos na hora”. De resto, a edição de sábado apresenta várias entrevistas a artistas como os irmãos Taviani, a intelectuais e economistas gregos e estrangeiros, ao deputado europeu Cohn-Bendit, e várias notícias sobre lutas de trabalhadores e de movimentos sociais na Grécia, na Europa e no resto do globo. Há ainda uma entrevista com o sociólogo marxista Eric Olin Wright, que visitou recentemente a Grécia e onde fala sobre as desigualdades de classe nos Estados, sobre o movimento Occupy em várias cidade e a possibilidade de coordenação nacional e global deste tipo de movimentos.

Em comunicado à imprensa, os grevistas agradecem o apoio que têm recebido e anunciam que a primeira edição do jornal, na última quarta-feira, vendeu 31 mil exemplares batendo a circulação de todos os outros jornais do país e esperam que a edição de sábado vá mais longe tendo imprimido 65 mil exemplares. Em breve o jornal estará online em www.erganet.wordpress.gr, e parte dos conteúdos serão traduzidos em inglês e noutras línguas à medida do possível. O alcance da produção directa dos trabalhadores está a ter impacto um pouco por todo o planeta, com citações nos media de vários países. Os trabalhadores acusam a direção do jornal de tudo fazer para proibir a edição d'Os Trabalhadores, nomeadamente através do recurso a uma ação judicial para os proibir de vender nos quiosques e a ameaças pessoais. A Federação Internacional dos Jornalistas emitiu uma carta dando apoio à sua luta em produzir o jornal.

Cristiano Ronaldo e Leonel Messi também têm direito a foto. A existência da seção de desporto e outras não é consensual, com alguns trabalhadores a preferirem uma edição com notícias apenas da sua situação e da luta dos trabalhadores na Grécia e na Europa. Porém, a edição nas bancas é em tudo semelhante a uma edição comercial, com a exceção da ausência de publicidade. Apesar da inevitável diversidade de opiniões nas oito centenas de trabalhadores, enfatizam que permanecem unidos na luta pelo seu posto de trabalho.

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sábado, fevereiro 25, 2012

Grécia: Ataque a todo e qualquer elo social

Em Atenas, para o beinternacional e esquerda.net


O Sindicato da Habitação Social e a Organização para as Políticas Sociais dos Trabalhadores foram fundados em 1931 pelo Ministério do Trabalho grego. Sobreviveram a várias ditaduras mas a troika propõe-se a acabar com eles no seu segundo plano de "resgate". Em risco estão milhares de postos de trabalho, um amplo e abrangente serviço social que ambas prestam e um impacto negativo na economia. Curiosamente, apesar da sua natureza pública, na prática trata-se de mutualidades financiadas colectivamente pelos trabalhadores e nunca receberam um euro (ou um dracma) do orçamento de Estado. Que motivos levam então a troika a querer acabar com estas instituições?

O Sindicato da Habitação Social

Fundada após a guerra, que deixou dois milhões de refugiados, a instituição tem como missão garantir o direito à habitação. Apoia 120 mil famílias no pagamento da renda e 83 mil no pagamento do empréstimo. O seu financiamento decorre do desconto de 1% no salário pelos trabalhadores e 0,75% pelos empregadores. Os beneficiários são, na sua maioria, desempregados, precários, doentes e outras pessoas em situação económica desfavorável. Uma família que, com o apoio, paga agora 200 euros de renda, passará a pagar 400. Um empréstimo com uma mensalidade de 600 euros passará a ter o custo de 900. Este drástico aumento, combinado com uma taxa de desemprego galopante e cortes brutais nos salários, ameaça vários milhares de pessoas de despejo. A banca, ávida, já diz que quer alterar a forma como as pessoas pagam a casa.

É o Estado que recolhe a colectivização daquela parte do salário e, como tem uma enorme dívida à segurança social, esta está em dívida para com a organização: 2300 milhões de euros. Ainda assim, a instituição dispõe de 700 milhões de euros em depósitos e 15 mil milhões em património. Portanto, mais que um favor ao patronato (0,75% do salário não é um valor significativo), a extinção desta organização parece assumir os contornos da tentativa de roubo retroactivo de 18 mil milhões de euros nos salários dos trabalhadores gregos.

A Organização para as Políticas Sociais dos Trabalhadores

Esta organização é responsável pelo apoio social aos trabalhadores e pensionistas em várias áreas, garantindo-lhes ainda uma ampla oferta cultural e turismo social. Dispõe de 20 mil infantários no país, onde educação e alimentação são gratuitas. É responsável por 4,5 milhões de dormidas/ano em turismo social e organiza 150 produções teatrais, para além de garantir bilhetes gratuitos para diversos espectáculos. O seu esquema de financiamento é igualmente através da mutualização dos salários, mas é fácil de ver que o seu fecho coloca em risco milhares de pequenas e médias empresas. A resistência está em marcha. Para além das manifestações, greves e divulgação, um infantário foi já ocupado pelos seus 15 trabalhadores e está em autogestão.

A austeridade não ataca só na economia

A extinção destas duas instituição é não só violenta para os trabalhadores, pensionistas e desempregados, como também é ruinosa para a economia. O que leva então esta medida a figurar no segundo plano de "resgate"? Para além do assalto imediato aos descontos dos trabalhadores há mais razões. Já no memorando original se procurava destruir todas as organizações representantes dos trabalhadores. As alterações das leis laborais foram no mesmo sentido, de enfraquecimento – e quase abolição – da contratação colectiva e agora até da proibição de novos contratos permanentes no sector público. Estas mútuas tinham sobrevivido. Este é assim mais um passo nessa caminhada de anular todo e qualquer laço social entre os trabalhadores, toda e qualquer forma de solidariedade. A "austeridade" não se limita a ser o mecanismo de extorsão dos trabalhadores para o capital, é também uma forma de profunda engenharia social.

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quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Trabalho para a vida: competência para a incompetência

Publicado no esquerda.net


Já conhecemos a narrativa da Europa dos tempos que correm, o tempo do trabalho para a vida acabou. A ideologia dos governantes europeus clama a flexibilidade para o mercado de trabalho. A estabilidade laboral é inimiga da produtividade e da qualidade, uma vez que permite que trabalhadores inaptos continuem nos seus postos, tapando-os a quem demonstre mérito para tal. É este o discurso que tem legitimado a desregulação laboral imposta a partir desta Europa e acolhida com entusiasmo pelos vários governantes. A reforma laboral em Espanha e Portugal são disso exemplo. Na Grécia, o segundo plano de “resgate” prevê que todos os novos contratos do sector público sejam contratos temporários. Proibir os contratos permanentes por lei, é esta a solução para relançar a competitividade do país. Para ajudar ainda mais, haverá uma redução massiva dos salários, nomeadamente com um corte mínimo de 22% do salário mínimo no sector privado.

Contudo, todo este discurso e todas estas medidas contrastam com a prática das instituições europeias. Nos próximos dez anos, 60% dos empregados das instituições europeias vão-se reformar, pelo que o recrutamento tem-se intensificado assim como a sua divulgação. Não é portanto raro ver notícias sobre o assunto, recheadas com declarações dos responsáveis pela área. Esta semana podemos ler na imprensa nacional que “a União Europeia quer recrutar mais e melhor”, que “há uma guerra pelo talento” e que “nós precisamos dos melhores para ajudar a fazer as políticas da União”. Portanto, como se propõe a União a conseguir atrair os melhores? Garantindo “um emprego para a vida” e “bem remunerado”. Ora, a política de recrutamento da UE está bem direcionada. Sabe que, para conseguir trabalhadores competentes e garantir um trabalho de qualidade, precisa de assegurar a permanência dos postos de trabalho.

É a própria política interna da União, definida pelos mesmos líderes que proclamam a ideologia da flexibilidade, que demonstra o quão erradas são as medidas que impõem aos povos da Europa. Infelizmente, por ora, a União procura trabalhadores competentes para aplicar políticas incompetentes no serviço à população. Por enquanto, a União é competente a impor o pagamento da crise aos trabalhadores, desempregados e pensionistas da Europa. Mas também isto muda, basta ter a força para aplicar as políticas competentes que ajustem a economia às necessidades das pessoas.

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quinta-feira, fevereiro 16, 2012

O empreendedorismo já não é o que era

Publicado n'A Comuna

Ainda sou dos tempos áureos do empreendedorismo. Alguns governantes pareciam não descansar enquanto não transformassem todo e qualquer português num empresário de sucesso. Esta é uma das imagens de marca do neoliberalismo. O discurso era simples e objectivo: há todo um mundo de oportunidades lá fora, se te esforçares, se fores bom, se ousares, tens o teu lugar no paraíso. Com a promessa do Éden, a adesão popular não se fez esperar e logo no início dos anos oitenta surgiu a geração yuppie embebida no espírito e praticante da ideologia como modo de vida. Ao longo das últimas três décadas a História é diversa, mas não faltaram os entusiastas e os crentes na competitividade da vida social. O Chile de Pinochet foi o balão de ensaio da teoria, mas a sua expansão mais romântica ocorreu em regimes de democracia parlamentar. De tal forma, que o neoliberalismo se reivindica como próprio da democracia. Fukuyama anunciava mesmo a democracia liberal como o estágio máximo da evolução humana que, naturalmente, se estenderia a todo o globo. Era o Fim da História, o fim da luta de classes.

É a importância do empreendedorismo para a sociedade liberal que torna as declarações do Secretário de Estado do empreendedorismo – sim, um governo ostensivamente neoliberal tinha que ter um – relevantes para retratar os tempos que correm. “Temos que perceber que não cabe ao Estado criar emprego. Quem cria emprego são as empresas”. Aqui não há novidade, o empreendedorismo sempre foi uma das forma de desresponsabilizar o Estado pelas políticas de criação de emprego. Apenas tornou as condições claras. Porém, Carlos Oliveira foge ao tom tradicional e solicita “à juventude portuguesa que concentre energias em encontrar solução e não a lamentar-se que não há soluções para o país”. Se antes se exortavam as massas com o lugar no Olimpo, agora retrata-se uma sociedade à beira do abismo e safa-se quem arranjarar solução para não ser arrastado na queda coletiva. Se durante décadas, o horizonte por defeito era a morada dos deuses, hoje apresenta-se o calvário. Antes havia lugar para todos, bastava ter mérito, e o Estado mínimo zelava pelos indigentes residuais. Agora, só há lugar para quem se safe, os outros já se sabe caem no abismo. Esta é de facto uma ínfima alteração no discurso, de peito cheio para braços caídos, mas faz toda a diferença. Torna claro que já nem os neoliberais conseguem dizer que o neoliberalismo tem algo a oferecer à sociedade. Está instituída a meritocracia na sua verdadeira dimensão, a lei do mais forte protegido pelas leis do mercado. Não admira assim que nalgumas partes da Europa seja já própria democracia liberal que se tenha tornado o alvo dos executantes da política neoliberal. A fábrica de ilusões colapsou, a sobrevivência do regime já não se coaduna com liberdades, nem mesmo com representatividades. A História está à espera de ser escrita.

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