segunda-feira, maio 31, 2010

Desfazendo mitos

Publicado n'A Comuna


Nos últimos dez anos, os defensores e intérpretes do sistema dominante espalharam aos quatro ventos o que seria de nós quando o Bloco de Esquerda chegasse ao poder. Incansavelmente, quem nos governa e os seus defensores andaram a anunciar as nefastas consequências que as políticas de igualdade do Bloco trariam: aumento do desemprego, perda de poder de compra e até um ataque concertado dos mercados a Portugal.

O que a realidade nos mostra? Um crescente exército de desempregados que actualmente conta com mais de 700 mil homens e mulheres, uma economia débil e, pasme-se, o Ministro das Finanças já nos explicou que o país é alvo de um ataque concertado dos mercados!

Recordando as palavras dos governantes e dos fazedores de opinião da última década sabemos que a actual situação económica e social do país é o resultado de políticas erradas. Concordamos no diagnóstico, apenas precisamos de usar a sua lógica para saber que as políticas erradas foram as que vieram a aplicar e a defender no país.

Mas desta caminhada sabemos ainda mais. Não só trouxeram o país para o perigoso destino que auguravam para um governo da esquerda socialista, como chegamos aqui exactamente por causa das políticas de desigualdade que nos garantiam ser o motor do desenvolvimento económico e social. Portugal é hoje um dos países mais desiguais da Europa. Há quem trabalhe para ser pobre: dos dois milhões de pobres do país, mais de 75% trabalha ou é pensionista. A pobreza de quem produziu riqueza durante toda a sua vida contrasta com os 17,4 milhões de euros que os quatro maiores bancos portuguesas lucram por dia ou com os 3,1 milhões de euros que António Mexia recebe por ano.

Ao longo das últimas décadas foram-nos dizendo que a assimetria na distribuição de riqueza era essencial para incentivar e premiar os especuladores e capitalistas: estes audazes correm riscos e é esta sua acção que faz a sociedade avançar, logo a sociedade deve retribuir. Mas também aqui sabemos hoje que a história estava mal contada. De facto, a nossa vida é um risco, quer se abra um café na esquina ou simplesmente se exerça uma profissão assalariada. Nestas duas actividades existe de facto o risco de ir à falência ou de perder o emprego. Contudo, como vimos com esta crise, as grandes instituições financeiras que andaram a ludibriar os seus clientes não correm qualquer risco já que os Estados, com o dinheiro de todos nós, as salvam da falência. E não só não há risco como afinal esta actividade orientada para a ganância não nos trouxe nem desenvolvimento económico nem social, apenas a crise.

Portanto, no momento em que nos dizem que a nossa organização social estava assente sobre um pressuposto errado – o mérito da desigualdade – não se apressam a corrigir os resultados dessas políticas, pelo contrário, retiram uns milhares de milhões de euros do dinheiro de todos nós para o atribuir a quem beneficiou desta política de desigualdade e agravam-na baixando ainda mais os rendimentos do trabalho.

A realidade coloca a ideologia dominante em cheque. Há que expor as suas contradições. Este não é o momento para que “todos” façamos sacrifícios, até porque já vimos que esse “todos” quer dizer “mais uns que outros”. Este é o momento de pedir contas a quem nos governou e a quem beneficiou das políticas de desigualdade.

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quarta-feira, maio 19, 2010

A biodiversidade e os negócios

Publicado no esquerda.net


As Nações Unidas declararam 2010 como o ano internacional da biodiversidade. Por todo o globo têm decorrido várias iniciativas alusivas ao tema, mas os tempos não são de festa. No início do mês, as Nações Unidas apresentaram um relatório (Terceiro Panorama Global de Biodiversidade) que diagnostica um planeta onde os ecossistemas que sustentam a vida e a economia global estão em risco de rápida degradação e colapso irreversível.

Sem grande surpresa, o relatório confirma que os líderes políticos mundiais falharam nas metas conservacionistas acertadas há oito anos. Até 55% das espécies estão ameaçadas de extinção, incluindo agora organismos de uso humano (pecuário e agrícola). Estas extinções afectarão primeiro as populações com menos recursos e que dependem directamente de animais e plantas para alimentação e fins medicinais. As Nações Unidas alertam ainda que os principais motivos para o desaparecimento de espécies - a perda de habitats, as alterações climáticas, a poluição, a sobre-exploração de recursos e o impacto de espécies invasoras - não estão a melhorar e nalguns casos estão mesmo a piorar.

O "business as usual", como disse Ahmed Djoghlaf da Convenção para a Diversidade Biológica, já não é uma opção se queremos evitar danos irreparáveis aos sistemas que suportam a vida. Ainda assim há quem discorde. Tem sido promovida a ideia, agora reavivada por um estudo impulsionado pelos ministros do ambiente do G8 e das 5 maiores economias emergentes, de que a única forma de proteger a natureza é atribuir o devido valor económico ao serviço que presta.

O estudo "A Economia dos Ecossistemas e Biodiversidade", também realizado na esfera das Nações Unidas e financiado pela União Europeia e pelos governos alemão e britânico, preconiza que a conservação da natureza ocorre caso represente lucro. Por exemplo, se se demonstrar que uma floresta intacta gera mais dividendos que os rendimentos obtidos pelo seu derrube e comércio, então a floresta continuará de pé. É assim que a Humanidade funciona, alegam. Tudo tem que ter um preço. Só assim se dá valor às coisas. Perante o abismo é sempre possível criar um novo mercado. Já vi este filme e está a ter maus resultados: institui-se uma organização social baseada no que garantem ser a "ganância natural" do humano, premeiam e dirigem as decisões para a ganância, ignoram o bem comum, até que chegam ao presente estado da economia. Alastrar a receita talvez não seja a melhor ideia...

Porém, enquanto a comunidade internacional se entretém a falar dos problemas da biodiversidade e dos seus impactos sociais sem nada fazer, a realidade prossegue. A Monsanto, maior multinacional do sector dos transgénicos e das sementes patenteadas, vai doar 475 toneladas de sementes ao Haiti. Numa das nações mais pobres do planeta, ainda a recompor-se da devastação do terramoto, os pequenos agricultores já prometeram uma forte contestação ao que consideram ser um ataque à pequena agricultura, aos agricultores, à biodiversidade, às sementes autóctones e ao que resta do ambiente no Haiti.

O movimento campesino haitino vê a oferta como um presente envenenado e, de facto, o cartão de visita não é convidativo. As sementes da multinacional serão distribuídas através do programa winner que tem como director um antigo Ministro dos Negócios Estrangeiro do então ditador haitiano "Baby Doc". Os objectivos declarado da agência governamental norte-americana de que faz parte o programa, a USAID, são claros: promover os interesses americanos em expandir a democracia e o livre mercado, enquanto ajuda os povos de países em vias de desenvolvimento.

Por sua vez, a Monsanto, de acordo com a Via Campesina, exerce um controlo crescente sobre a agricultura, arruína os pequenos agricultores e fa-los perder as suas terras. Por estes motivos, a maior organização mundial de camponeses lançou no ano passado um dia mundial de protesto contra a multinacional.

Os receios são fundamentados. A empresa terá informado o governo haitiano de que as sementes foram tratadas com fortes fungicidas, mas não adiantou que nos Estados Unidos é obrigatório o uso de equipamento próprio de protecção para quem lida com esses químicos, nem adiantou qualquer oferta de treino no seu manuseamento ou de roupas de protecção. Os agricultores temem ainda que futuramente a Monsanto introduza sementes transgénicas na ilha. A capacidade reprodutiva das sementes híbridas e os direitos das patentes das mesmas são outras das preocupação já que podem deixar o povo haitiano totalmente dependente das práticas comerciais da empresa.

É este o retrato da solidariedade internacional. Após tanta promessa de ajuda económica e social ao Haiti, o melhor que a comunidade internacional consegue fazer é entregar a segurança alimentar de toda a população a uma única multinacional com interesses predatórios no sector.

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domingo, maio 16, 2010

A fornicação e a moral pública


Não sei se foi da visita do número 1 da ICAR a Portugal, mas a polícia dos costumes saiu à rua.

Duarte Pio, o tipo que acha que devia ser rei e todos nós súbditos, veio a público garantir que "Tornar obrigatório o ensino da educação sexual resume-se a dizer: forniquem à vontade, divirtam-se, façam o que quiserem mas com higiene. Praticamente é só isso, em vez de dar referências éticas e morais em relação ao desenvolvimento de uma sexualidade saudável. Ao mesmo tempo, desencorajam-se as aulas de educação moral e estamos a dizer que a moral não tem importância, que só a sexualidade livre é fundamental para a felicidade dos portugueses".

Duarte Pio aproveita a embalagem e declara ainda que consigo não havia divórcio, casamento homossexual ou aborto. Fico verdadeiramente comovido com este desejo de tornar o Estado como o doutrinador e fiscalizador da moral e dos costumes. Fico enternecido especialmente por quem o pede, já que a malta da sua laia - quem julga que por ser filho de um tipo qualquer lhe confere direitos superiores ao resto da população - no passado utilizou exactamente esses mecanismos para impor, por exemplo, o direito de pernada.


Mas, mais grave que as declarações de um tipo a uma revista é mesmo a actuação de malta a quem a sociedade confere alguns poderes. Isto sim assusta: que a Vereadora Maria Gentil Vaz, do PSD, possa definir a moral pública e impô-la com o despedimento e a transferência de funções da professora das actividades de enriquecimento curricular Bruna Real que pousou para a Playboy com outra mulher.

A Câmara de Mirandela empregava a professora através de recibos verdes ilegais e a ganhar menos de 500 euros. José Pires Garcia, presidente do agrupamento de escolas em questão considera ainda que pode definir o que é apropriado ou não para a vida privada de um professor:"aparecer numa revista sem roupa não é compatível com a função de professora e de educadora".


Esta conduta dos poderes em Mirandela mostra-nos não só o abuso desta gente ao impor os seus valores conservadores a toda a sociedade, mas também a sua visão sobre o trabalho. Durante o horário laboral vendemos não só a nossa força de trabalho, mas também a nossa vida. E, fora da labuta, temos que nos reger pelos princípios morais de quem nos emprega. A única coisa bonita nesta história é o facto destes conservadores se oporem ao mercado que tanto idolatram: a revista esgotou, não foi? O mercado serve para para distribuir os bens e serviços pela procura e logo pela necessidade social, não é? Pelos menos é essa a justificação para vivermos nesta organização social capitalista. Se não é verdade, ...

Já sabíamos que a precariedade era um excelente mecanismo de controlo social, minimizador do confronto quando se baixam salários e se retiram direitos laborais. Ficamos agora a saber que esse controlo social se estende à imposição de uma moral pública. Ou aceitas a coisa implícita ou ficas sem emprego.


Nada que me seja distante e não esteja habituado. Em Aveiro o Presidente Élio Maia deu a si próprio o poder de definir e interditar o que não vai ao encontro do "decoro e moral públicas" e o Vice-Presidente Carlos Santos acha que tem o poder para definir que os eleitos não podem usar sapatilhas em iniciativas públicas.

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