[publicado no Diário de Aveiro, 10 de Novembro de 2006]
Luther Blissett não é recordado na história do futebol. Contratado em 1983 pelo Milão AC, as suas prestações foram tão más que volvido um ano foi devolvido – com prejuízo – ao clube de origem, o Watford. Ao que parece terá sido confundido pelos olheiros milaneses com o colega de equipa John Barnes (ambos de origem jamaicana). O sucesso de Barnes é irrefutavelmente superior, tendo vindo a fazer parte de uma equipa mítica do Liverpool FC.
Luther Blissett foi o primeiro negro a jogar na selecção inglesa e dos poucos a jogar na liga italiana pelo que tinha vida difícil nos relvados, constantemente apupado e insultado por adeptos de extrema-direita.
Longe dos relvados e de Luther Blissett surge o projecto com o seu nome. Deconstruída a identidade individual todos podemos ser Luther Blissett, basta adoptar o nome. Foi o que fez uma comunidade aberta que começou com quatro activistas e que se estendeu a centenas na Europa.
Luther Blisset combate a indústria informativa através da sua produção artística, pela organização de campanhas heterodoxas de solidariedade com os oprimidos e pela fabricação de mentiras para os media. No final a responsabilidade é sempre reivindicada e as falhas da indústria que permitiram a implementação da história falsa são explicitadas.
As suas histórias reproduzidas nos media são imensas deixo apenas uns exemplos. Harry Kipper, um artista conceptual britânico, desaparece nas montanhas do norte de Itália ao tentar traçar as letras ATR no mapa continental… de bicicleta. A televisão estatal italiana bem o procurou, chegou a ir a Londres falar com os seus amigos. Mas uma pessoa que não existe e que nunca existiu é difícil de encontrar. Luther Blissett assumiu a responsabilidade.
Durante um ano os media locais e nacionais dão conta de actos satânicos numa pequena cidade italiana. Políticos aproveitaram o pânico para se mostrarem. Ao fim de um ano Luther Blissett declara-se responsável fornecendo imensas provas – que sempre estiveram disponíveis – disso mesmo.
Uma chimpanzé abusada pela indústria farmacêutica e libertada por um grupo de defesa dos animais tornou-se numa talentosa artista que ia expor as suas cuecas na Bienal de Arte de Veneza.
Podemos ainda ver as imagens de Marko Maver, um artista sérvio anti-regime, morto num bombardeamento da NATO à prisão onde se encontrava.
Quer seja pelo fetiche do sensacionalismo, pela não confirmação de fontes ou por uma miríade de outros factores os meios de comunicação mentem. Este projecto visava a denúncia e a ridicularização dessa conduta.
Actualmente vamos conhecendo a realidade praticamente apenas pelo ecrã de televisão. O que figura ali é absoluto, completo, objectivo, verdadeiro, autêntico e real. É a realidade mais tangível que os cabelos que afagamos. E é com base neste conhecimento da realidade que a analisamos e nos definimos. É portanto essencial que a sociedade esteja ciente da verdadeira dimensão da informação que nos inunda.
Voltando por breves momentos à realidade da actualidade que me motivou para este escrito: na revista Fortune apareceu uma reportagem, paga, de 10 páginas onde Sócrates é retratado como o salvador da pátria e onde Cavaco é mero observador das suas reformas. Se é certo que o Estado a pagou, ainda ninguém sabe ao certo quem a pagou.
Marques Mendes queixou-se da excessiva propaganda governamental na RTP. Porventura uma acusação válida, dada a suavidade com que Sócrates é tratado nesta estação comparativamente com as restante. Contudo o alvo de Marques Mendes foi exclusivamente a ausência de alguém do seu partido no Prós e Contras. Claramente não está preocupado com a equidade nos media, apenas terá saudades de outros tempo. Sobre a situação dos media na Madeira: nem uma palavra!
Voltemos a outro projecto. Os Yes Men praticam a correcção de identidade que definem como “pessoas honestas que se fazem passar por grandes criminosos de forma a os humilhar publicamente. O alvo são lideres e grande empresas que colocam o lucro à frente de tudo o resto”.
Os Yes Men já foram várias vezes tomados por outras pessoas e convidados para conferências e entrevistas. Da sua actividade destaco a entrevista em directo à BBC de um suposto executivo da empresa que comprou a Union Carbide Índia. Esta empresa é responsável por um acidente industrial de 1984 em Bhopal (Índia) onde foram libertadas 40 toneladas de químicos que provocaram a morte a 20 mil pessoas. O local nunca foi limpo e a população não foi ajudada e continua a sofrer da contaminação tóxica que ainda se regista no local.
O suposto executivo anunciou que iam proceder à limpeza do local e iriam compensar as vítimas. As acções da Dow desceram 4,2% em 23 minutos perdendo 2 biliões de dólares no seu valor de mercado.
Para finalizar apresento-vos Serpica Naro, uma estilista anglo-japonesa que iria apresentar as suas roupas num desfile na Semana da Moda de Milão. A jovem desdobrou-se em inúmeras entrevistas e comunicados através da Internet. Apenas na hora do seu desfile é que os media e a indústria descobriram que não existe.
Serpica Naro é um anagrama de San Precario, o símbolo da classe laboral precária e dos protestos que decorrem em Itália contra a sua exploração.
Abordado San Precário posso dizer que na próxima quarta-feira, no Mercado Negro, será exibido o filme “Evangelho Segundo Precario”. Mas será que depois de tanta mentira neste artigo, esta informação será de confiar? Quarta-feira podem descobrir.