[publicado no Diário de Aveiro, 9 de Junho de 2006]
Timor está a saque. À distância muito pouco nos é dado a conhecer. O rastilho foi aparentemente incendiado por uma antiga rivalidade entre duas etnias. Curiosamente, tudo começou e se agudizou em simultâneo com o decurso do concurso para exploração de petróleo em Timor. Desconhecemos quem realmente se move no tabuleiro e ignoramos o fiel retrato da realidade e magnitude dos acontecimentos.
O mundo vive ladeado de anjos de pureza. Nações insuspeitas que abnegadamente enviam as suas forças militares em auxílio da Humanidade sofrida nas mais diversas partes do globo. À sombra da imagem pública que lhes confere a exportação da democracia e da liberdade permanecem. Noutras latitudes já a máscara destes anjos de pureza se deteriorou e se contempla a sua verdadeira fealdade, os seus reais interesses.
Já a 5 de Maio o Primeiro-Ministro australiano, John Howard, dizia que as suas tropas estavam prontas para entrarem em Timor, demonstrando uma enorme ânsia de intervir. Mais tarde intitulou o Governo Timorense de incompetente, desautorizando-o.
Assistimos à pilhagem de edifícios governamentais sob o olhar atento mas passivo de dezenas de tropas australianas, ao passo que a chegada de apenas três GOE controla a situação. Observamos ainda forças australianas a afastarem a GNR de certas zonas. Boquiabertos espreitamos tropas australianas a protegerem o líder de uma revolta contra um Estado de Direito legalmente constituído, o mesmo que supostamente estão a proteger. E, à medida que escrevo estas linhas, o impensável acontece: militares australianos ameaçam disparar contra a GNR.
Eu não quero acreditar que forças militares não estejam a proteger a população local, nem mesmo os interesses da sua população natal, mas sim de empresas privadas da sua terra natal.
Recuso-me a acreditar, mas a navalha de Occam dilacera-me a razão. Se excluir as explicações simples dou por mim emaranhado em complexos e inatingíveis novelos de lã. Quem não está por bem não deve estar.
A ida da GNR para Timor neste contexto era uma urgência para a população. Contudo, Portugal não podia embarcar na legítima e necessária onda de mobilização nacional sem um mínimo planeamento que protegesse o estatuto da GNR e não os colocasse reféns das circunstâncias. Por este motivo o Bloco de Esquerda foi o único partido a colocar inicialmente reservas sobre a ida da GNR chamando o Ministro dos Negócios Estrangeiros ao Parlamento. Deste modo o Governo teve que definir claramente a missão da GNR, abandonando o objectivo de repor a ordem pública para abraçar a manutenção da paz. Também foi definida a liderança da GNR com o afastamento da hipótese australiana, obedecendo ao Presidente Xanana Gusmão e ao PM Alkatiri nas suas decisões consensuais e com o comando estratégico a ficar nos próprios oficiais portugueses.
Apesar de todos estes esforços a GNR está neste momento confinada ao seu quartel com ordens para não sair e o Governo pondera a sua retirada de Timor.
Os protestos continuam como uma roda dentada em circulação redundante. Os protestantes querem a demissão do PM Alkatiri alegando que este não é capaz de suster a rebelião iniciada e continuada pelos próprios protestantes e que, segundo os mesmos, só terá fim quando o PM finalmente se demitir. A essência destes protestos constitui claramente uma tentativa de derrube do Governo democraticamente eleito.
Ouço o líder revoltoso declarar apoio a Ramos Horta para Primeiro-Ministro. No mesmo dia leio Ramos Horta, actual ministro, afirmar-se disponível para substituir o seu Primeiro-Ministro caso este se demita. Estranheza por estas declarações de quem está na sua dependência. De imediato em Lisboa o Bispo de Baucau, líder de uma revolta que há meses infrutiferamente visou derrubar Alkatiri, declara apoio a Ramos Horta nessa eventualidade. O mesmo nome repetido à exaustão, mas nenhum prémio substitui a legitimidade dos votos.
Timor é uma ilha que no seu seio vive uma situação caótica e que se encontra cercada por embarcações australianas. A substituição dos poderes democraticamente sufragados não necessita de se substanciar por um golpe de estado militar. Muitas pressões estão a ser feitas em Timor neste momento que podem levar a um golpe encapotado.
A situação da GNR face a uma mudança dos poderes timorenses será muito ingrata. Uma força portuguesa na república soberana de Timor terá que estar sempre enquadrada na sua linha de governo. Ora com a consumação de uma qualquer alteração dos poderes a GNR ficaria refém das ordem de um poder não democraticamente eleito. Poderia ver-se na eminência de, na sua missão de manutenção de paz, abafar as tentativas de reposição da ordem democrática por parte da população.
Estranho jogo em que a rainha nunca é sacrificada, em que apenas os peões sofrem.